O presente texto nos foi enviado pela autora após troca de emails entre integrantes do nosso clube de leitura por ocasião do debate do livro de Maio 2013 em que se comparou "o fazer literário de Chico Lopes, autor do excelente 'O estranho no corredor' e a pintura de Edward Hopper". O texto foi inspirado na tela "Sun in an Empty Room".
Depois de tantos anos, volto à casa de meus avós. Preciso
revê-la e despedir-me, antes que novos donos a possuam. A sala vazia, de tinta
fresca e cores intensas, amarelo e marrom, avivadas pelo raio de sol entrando
pela janela, traz-me de volta o passado mergulhado em suas paredes caiadas.
No meio da sala, ficava a mesa
comprida onde a numerosa família reunia-se para mais um almoço de domingo. Meu
avô, à cabeceira, mantinha-se, como sempre, em silêncio, acompanhado por todos.
“A refeição é um momento sagrado e merece respeito”, dizia. Somente hoje, me
dou conta do verdadeiro motivo daquele silêncio. O velho e sensível vô Chico, homem
calado e circunspecto, tinha receio de que, ao falar, aflorassem seus
verdadeiros sentimentos e visse prejudicada sua autoridade.
As
belas peças do aparelho de porcelana chinesa enfeitavam a mesa. Minha avó fazia
questão de exibi-las nos dias de festa. Domingo, para ela, era um desses dias. Exímia
cozinheira, dispensava Zefa, e ela mesma, com muito carinho, preparava o
almoço. Na sopeira fumegante, a canja de galinha perfumada com folhinhas de
hortelã, ou o caldo verde incrementado com rodelas de paio e couve cortada bem fina,
caprichosamente. Torradinhas e um bom vinho português eram os acompanhamentos
para os adultos. Para as crianças, soda e groselha.
—Que delícia, que aroma maravilhoso!— dizia tio José.
—Vóvó, serve logo! adoro sua comida!— pedia Nelito,
meu primo guloso.
—Também gosto, mas, na verdade, estou ansiosa pelos
pastéis de Santa Clara, da sobremesa—acrescentava tia Eulina.
Após
essas manifestações, fazia-se silêncio novamente.
Na
goiabeira, em frente à janela, trepava Juca, o filho da Zefa, colhendo goiabas
pra gente comer, avidamente, com bicho e tudo, comandados por nossos impulsos
glutões.
Espalhava-se no ar, a doçura
das balas vinda da fábrica vizinha. Hoje, em seu lugar, ergueu-se um prédio
imenso. Concreto, sem nenhuma doçura.
O ruído do bonde, correndo
vazio sobre os trilhos, varava a quietude da noite fazendo tremer toda a casa. Ainda
que nos levasse a acordar assustados, eu, meu irmão e meus primos disputávamos,
o prazer de dormir nesta casa, aconchegados pelas carícias de vó Cotinha: “Durma,
querido, foi o bonde”. Falava com ternura, passando as mãos em nossas testas.
Meus avós partiram. Os nove
filhos também. Os jovens envelheceram. A casa está à venda.
Continuam os mesmos, apenas,
o raio de sol entrando pela janela e a velha goiabeira carregadinha de frutos.
Na sala vazia, trago um coração
machucado de lembranças. “Raiva de não ter trazido o passado roubado na
algibeira”, lamento com Fernando Pessoa.
Querida Elenir,
ResponderExcluirSwu texto carrega as emoções doces das belas recordações de um tempo de tranquilidade, de aconchego e de aromas , quenturas de colo de avós. Emocionante, como é você sempre!
Bjs,
Elô
Querida Elô, Obrigada!
ResponderExcluirEscrevi esse texto há uns cinco anos. Inspirou-me a tela "Sun in na Empty Room", de Edward Hoopper. Quando o Carlos Rosa fez uma comparação entre a excelente obra de Chico Lopes e a, também excelente, de Edward Hoopper, respectivamente, na literatura e na pintura, busquei-o em meus arquivos e enviei-o ao Evandro que, gentilmente, como sempre, postou-o no blog.
Beijos.
Elenir
Isso, é isso que eu falo, aqui nesse espaço, ficam mais tempo registrados e melhor visualizados nossos comentarios sobre os textos.
ExcluirGostei muito dessa linda comparação.Quadros nos estimulam muito o pensamento, a imaginação,e como todos sabemos, você, Elenir, é dona de uma sensível e pródiga imaginação, ou melhor ainda, memória afetiva.
Abraços carinhosos,
Elõ(Helena, no Facebook)
Belo texto, Elenir.
ResponderExcluirAssim como essas suas, as recordações estão sempre envoltas em poesia. Se olharmos com atenção, sempre encontramos o romantismo com que nos lembramos do passado, e a poesia com que o descrevemos, se queremos falar dos bons momentos, claro, porque os maus também existem, e destes podemos também ser românticos, porém, revoltosos, digamos.
A forma como elabora seu texto, Elenir, as palavras que usa, os diminutivos, "a velha goiabeira carregadinha de frutos" - diminutivos que são tão representantes de nosso carinho e afeição à coisa nomeada, ao tempo relembrado -; o carinho da sua avó ao fazer a comida, ao proteger os netos do medo; o silêncio do avô, defendido como uma forma de proteger sua autoridade; enfim, tudo consegue demonstrar, transparecer o carinho com que guarda na memória esses dias de infância.
E quanto ao quadro, adoro Hopper, e já o usei para ilustrar poemas e outros textos meus no meu blog ou no Facebook - sempre uso pintores, e alguns fotógrafos, para ilustrar meus escritos na internet.
Vejo na fotografia o mesmo que disse a Elô, "Quadros nos estimulam muito o pensamento". Tenho poema escrito, por exemplo, a partir de quadro do Monet. As pinturas realmente nos liberam sonhos, imaginamos o mundo onde se passa aquela suposta ação descrita lá, o que pensaria a moça com o brinco de pérola, ou a da sombrinha na colina, ao sol, o que poderiam pensar os três homens e as duas mulheres em um terraço, estáticos olhando o horizonte sob um vasto céu azul, na pintura "People in the sun", de Hopper. Mas claro, não pensam, são apenas imagens, mas pensamos nós, realizamos uma espécie de exercício de criação, e bolamos um enredo para a pintura. E como isso é bom!
Agora me vou, sem mais, que já fui muito longe.
Um abraço, Elenir e amigos do CLIc.
Caro Will,
ResponderExcluirFico feliz e honrada ao receber suas palavras elogiosas sobre o meu texto, pois o considero um grande e sensível escritor. Sem ser uma memorialista,trago a memória de uma infância muito feliz e, de vez em quando, gosto de revivê-la através de meus textos. Mas, às vezes, penso: Teria sido realmente tão feliz? Conforme diz Gabriel Garcia Marques: "A vida não é a que a gente viveu e, sim, a que a gente recorda e como recorda para contá-la" Concordo.
Mais uma vez, Obrigada!
Abraços.
Elenir
Obrigado a você Elenir, pelas palavras gentis.
ExcluirSobre a memória, não seria estranho que elas fossem, algumas ou muitas vezes, recriadas em cima daquilo que realmente vivemos - Garcia Marquez tem razão. E era também a isso que eu me referia quando falei do romantismo com que comentamos nossos sonhos.
Um abraço!
Elenir, você nos leva pelos caminhos da saudade de um tempo que não volta mais e está lá no cantinho das boas lembranças. O seu texto vem carregado de muita sensibilidade que desencadeia emoções e torna-se impossível evitar olhos lacrimejantes. Tudo nos leva a recordar nossas vivências da infância, há pequenas diferenças com relação a árvores frutíferas e movimentação no ambiente. Quando vivemos esses momentos não sabemos da importância deles no futuro e que ficará na sala da mente reservada ao prazer da imaginação.
ResponderExcluirFico agradecida de poder revisitar com você a ‘salinha’ prazerosa da infância.
Abraços!
Sonia Salim
Obrigada, Sonia, por suas palavras tão gentis e por compartilhar comigo as lembranças prazerosas de nossas "salinhas" da infância.
ResponderExcluirBeijos.
Elenir