Fundado em 28 de Setembro de 1998

24 de junho de 2020

A Morte em Veneza: Thomas Mann



Fred: Com relação à nossa última reunião - Como foi comentado na reunião cada obra nos impacta naquilo que reflete em nossa alma. No meu caso, fiquei muito sensibilizado pela extrema solidão e introspeção do personagem. Ele empreende uma corajosa jornada entre o ser anterior muito Apolo para um ser mais Dionísio, com sacrifício da própria vida. A falta de personagens femininas que, ao contrário das masculinas, são mais gregárias contribui para acentuar a solidão do personagem. Talvez fosse essa a intenção do autor, refletindo sua alma...


Ceci: Hoje fiquei pensando como ficou difícil ler o livro sem imaginar o filme que está mto entranhado em mim Deveria ter feito como nosso mestre Emmanoel comentou..anotar. pensar...resumir...mas estava com pouco tempo E qto ao livro. se justamente ele incomoda.é por ter algo que tem um conteúdo importante que desconhecemos.negamos.ocultamos. e quando vem a tona .sai das sombras.traz uma luz incomodativa.....


Eloísa: Realmente foi excelente ter tantos amigos reunidos e nossos grandes leitores tão entusiasmados.  A obra lida, embora curta,  ensejou muitas idéias,  choques com nossos preconceitos ( a educação religiosa tem muito peso). Mas ninguém poderá  negar suas plurissignificações! A cultura pagã infiltrada, misturada à cristã! Deu  margem a  várias visões, remexendo nossas crenças... Há  um lado prazeroso e um lado  bem subterrâneo, desconfortável para muitos.  Sacudiu muita gente. NÃO o colocaria na lista dos preferidos...Perdi um primo que me lembra Tadzio, lindo, sensível, amoroso...muito lindo! Meio parecido com Eduardo Dussek.

CLIc na imagem

"'Sempre, ou pelo menos desde que dispunha dos recursos necessários para valer-se das vantagens da circulação internacional, considerara as viagens apenas como uma medida higiênica que de vez em quando lhe convinha tomar, contrariando assim as suas inclinações e vontades. Por demais absorvido pelos problemas que lhe impunham o próprio eu e a alma europeia, excessivamente amarrado pelo dever de produzir e ainda demasiado avesso a quaisquer distrações para ser capaz de amar o colorido mundo exterior, dera-se por satisfeito com a opinião que cada um, sem jamais se distanciar muito do seu ambiente habitual, pode formar a respeito da superfície da Terra' (MANN, 2015, p. 14).

É interessante esse “provincianismo” de alguns intelectuais e filósofos. Certa vez li, em algum lugar, que Kant, o filósofo, nunca ultrapassou um raio muito pequeno do lugar onde morava. Mas essa foi a primeira vez que vejo atribuir essa visão de mundo ao excesso de atenção e cuidado “ao próprio eu e a alma europeia”. Isso me pareceu uma espécie de narcisismo. 

“ [...] Era perdoável – e no fundo significava um autêntico triunfo do seu procedimento consciencioso – que pessoas mal informadas considerassem produto de concentradas forças e longo fôlego o panorama que ele pintara dos maias ou a vasta epopeia em cujas páginas se desenrolava a vida heroica de Frederico, quando, na realidade, tratava-se de obras elaboradas em minúscula progressão cotidiana, edificadas à base de centenas de inspirações avulsas até tornarem-se grandes, e que somente chegavam a ser magníficas, perfeitas em todos os seus pormenores, porque o autor, com paciência e tenacidade comparáveis àquelas que levaram tal rei à conquista de sua província natal, aguentara por anos e anos a tensão originada por um e o mesmo trabalho, dedicando exclusivamente à própria elucubração os momentos mais lúcidos e mais dignos” (MANN, 2015, p. 19)

Achei muito interessante a atenção que o escritor chama para o trabalho cotidiano do artista, que pode acabar culminando em obras grandiosas mas, no fundo, são sempre “edificadas à base de centenas de inspirações avulsas até tornarem-se grandes”. E que isso exigia do autor “paciência e tenacidade comparáveis àquelas que levaram tal rei (tá se referindo a Frederico) à conquista de sua província natal” e, pra isso, “aguentara por anos e anos a tensão originada por um e o mesmo trabalho, dedicando exclusivamente à própria elucubração os momentos mais lúcidos e mais dignos”.

“[...] Também do ponto de vista pessoal, a arte é uma vida mais intensa. Causa profunda felicidade, porém consome rapidamente. Grava na fisionomia de seu servidor os sinais de aventuras imaginárias e espirituais, e, não obstante a calma monacal da existência exterior, produz no decorrer do tempo um quê de fastio, ultrarrefinamento, cansaço, curiosidade dos nervos, tais como uma vida cheia de orgiásticos prazeres e paixões dificilmente seria capaz de provocar” (MANN, 2015, p. 23).

Interessante a visão da arte como uma forma de vida intensa, que “causa profunda felicidade, porém consome rapidamente”. Ao afirmar que a arte “grava na fisionomia de seu servidor os sinais de aventuras imaginárias e espirituais”, o escritor parece estar emulando com muita antecedência o que vai lhe acontecer no caso Tadzio. 

“Cansado e todavia espiritualmente alerta, distraiu-se durante a demorada refeição, ponderando assuntos abstratos e mesmo transcendentais. Meditou acerca da misteriosa fusão que devia produzir-se entre a norma e a individualidade para que se originasse a beleza humana. Dali, enveredou para problemas gerais da forma e da arte, e por fim constatou que seus pensamentos e achados se pareciam com certas sugestões que nos vêm nos devaneios, insinuações aparentemente felizes, mas que, perante a razão sóbria, revelam sua natureza insípida, totalmente inaproveitável” (MANN, 2015, p. 36).

Nesse trecho, um pouco sinuoso, o autor parece estar contrapondo a “razão sóbria”, que engendra, de certa forma, a norma, com os devaneios do sono, mas também, por semelhança, com os pensamentos e achados do artista em ação. E apesar do seu constrangimento, ele vai reconhecer que isso dá origem, no fundo, à beleza.

“[...] Adorava o mar por profundas razões: o anseio por sossego, bem natural num artista que muito trabalhava e, em face da exaustiva multiplicidade das visões, desejava achar um abrigo no seio da simplicidade desmesurada; a propensão ilícita, precisamente oposta às suas tarefas e por isso tentadora, para tudo quanto fosse desconforme, monstruoso, eterno, a propensão para o nada. Repousar na proximidade da perfeição é o anelo de quem procura aprimorar a sua obra, e não é o nada uma das formas da perfeição?” (MANN, 2015, p. 39).

Lendo prospectivamente o autor, se pode vislumbrar suas “desculpas” antecipadas, ou melhor dizendo, suas “racionalizações”. É o que vejo nesse trecho quando ele fala da “propensão ilícita, precisamente oposta às suas tarefas e por isso tentadora, para tudo quanto fosse desconforme, monstruoso, eterno, a propensão para o nada”. Para em seguida, indagar, quase afirmando, se não é o NADA uma das formas da perfeição.

“[...] Achava-se bem perto de Aschenbach, tão perto que este pela primeira vez teve ensejo de contemplá-lo, não à distância de um ídolo, senão com perfeita nitidez, percebendo todos os pormenores da natureza humana do objeto. Alguém dirigiu a palavra ao garoto, mas Tadzio, apenas respondendo com um sorriso de indescritível doçura, já desembarcou no primeiro andar. Enquanto saía, baixava novamente os olhos. ´A beleza torna as pessoas pudicas´, ponderou Aschenbach, e com certa insistência procurou averiguar por que seria assim. Ao mesmo tempo notara a imperfeição dos dentes de Tadzio. Eram um tanto pontudos e lívidos, sem aquele esmalte que confere a saúde, e de singular transparência e aspereza, tal como frequentemente encontramos entre os anêmicos. ´O rapaz é por demais delicado; é mesmo doentio˜, pensou Aschenbach. ´Provavelmente não viverá muito tempo.´ Mas omitiu de prestar a si mesmo contas por uma pontinha de satisfação ou euforia que acompanhava esse diagnóstico” (MANN, 2015, p. 43).

Que drama vive esse cara! E nada como a proximidade do “idealizado” pra que se perceba os seus defeitos. E mais ainda, pra que se sinta a “pontinha de satisfação” com a percepção, visto que a existência dos defeitos constituem a garantida do real.

“[...] ´Vejam só, o Tadzio também está aí!´. No mesmo instante, porém, notou que a constatação displicente emudecia e esvaía-se perante a verdade de seu coração. Deu-se conta do entusiasmo de seu sangue, da alegria e do pesar de sua alma. Reconheceu que fora por causa de Tadzio que a despedida se tornara tão penosa a ele” (MANN, 2015, p. 48).

Só mesmo um poeta pode exprimir de forma tão delicada a percepção das contradições de Eros agindo em si, dizendo pra si mesmo: “Deu-se conta do entusiasmo de seu sangue, da alegria e do pesar de sua alma”. Muito bacana!

“[...] Quando e onde quer que se tratasse de folgar, de repousar, de levar uma vida ociosa, o enjoo e a inquietude faziam logo – sobretudo nos tempos da sua mocidade – com que ele ansiasse por voltar à sua sublime labuta, ao sagrado e prosaico serviço de todos os dias. Cinicamente esse lugar enfeitiçava-o, enfraquecendo sua energia e tornando-o feliz” (MANN, 2015, p. 51).

Mais uma vez ele traz à tona a natureza rotineira e cotidiana do trabalho do artista. Isso me lembra um autor, também Thomas, só que este é Thomas Kuhn, que faz revelações muito semelhantes sobre o trabalho do cientista como um “fazer” cotidiano e rotineiro, que ele vai chamar de “ciência normal”, contrapondo-a com os momentos em que a ciência, por conta das controvérsias, se torna uma “ciência revolucionária”, rompendo com a normalidade cotidiana, o que ele compara com um quebra-cabeças, onde as coisas podem até estar embaralhadas mas possuem um quadro geral já definido. 

“A felicidade do escritor reside no pensamento que possa ser convertido inteiramente em sentimento e no sentir capaz de se tornar inteiramente pensar” (MANN, 2015, p. 55).

Muito interessante essa perspectiva de que o escritor se realiza ao ser mediação entre pensamento e sentimento. Me parece que o autor está se referindo ao fato de que a alegria do escritor é poder expressar de forma explícita, talvez sob a forma da sua obra, aquilo que ele sente. Isso talvez sinalize a expectativa dele de que o que ocorrera entre ele e Tadzio foi uma expressão dessa mediação. 

“[...] Também ele fora soldado, fora guerreiro, como a maioria da sua estirpe, uma vez que a arte era uma luta, um combate exaustivo, que a essa altura poucas pessoas sabiam aguentar por muito tempo. Uma vida de autodomínio e de obstinação, vida áspera, perseverante, sóbria, transformada por ele em símbolo de delicado e moderno heroísmo. Bem podia ser qualificada de viril e corajosa, e queria parecer a Aschenbach que aquele Eros que se apoderara da sua alma correspondia em certo sentido, mais do que qualquer outro, a esse tipo de vida. Não gozara tal Eros de sumo prestígio entre os povos mais valorosos? Não se afirmava que ele florescera nas cidades antigas, graças, precisamente, ao destemor dos seus habitantes?” (MANN, 2015, p. 65).

Mais uma vez, aqui, o autor vai buscar uma metáfora forte para expressar sua leitura do que é a arte. A impressão que fica é de que toda a novela foi construída como uma forma de dizer o quanto a arte é capaz de mexer com os sentimentos e com a realidade inteira do artista. 

“[...] Nos dois orfanatos já não havia lugar, e um tráfego de espantosa intensidade começava a ligar o cais dos novos alicerces a São Miguel, a ilha dos cemitérios. Mas o medo de um prejuízo geral, a consideração pela recém-inaugurada exposição de pintura nos jardins públicos, o receio de enormes perdas que, no caso de um pânico ou de um descrédito da cidade, sofreriam os hotéis, os lojistas e todos os ramos da exploração do turismo, evidenciou-se mais poderoso do que o amor à verdade e o respeito aos convênios internacionais. Em virtude disso, as autoridades aferravam-se obstinadamente à sua política de silêncio, desmentindo todo e qualquer boato. O diretor do Departamento de Saúde da cidade, homem de grandes méritos, demitira-se, indignado, de seu posto e fora substituído, convenientemente, por uma personalidade mais dócil” (MANN, 2015, p. 74).

Ontem, como hoje, permanece a oposição entre economia e vida. Como se uma pudesse existir sem a outra. E pior ainda, com os agentes do poder, seja ele econômico ou político, cinicamente fazendo a sua escolha pela economia em detrimento da vida, desde que esta não seja a deles próprios." (Emmanuel)






Debate pelo ZOOM: 18/06/2020 - 19h30 

Link pra reunião:

https://us02web.zoom.us/j/81596888989?pwd=NFpEb1E1N3hzSklWaGpOUGI2OUI5dz09












Por que será que Visconti troca o métier do protagonista no filme?

[00:28, 04/06/2020] Eloísa: Já descobri pq escolheu a música.  Para marcar os momentos de maior intensidade dramática e romântica.  Afinal a música  pode penetrar nos sentidos  com maior facilidade, ela é universal. Quando lemos  temos a imaginação, mas o cinema precisa de mais elementos coordenados pra criar um  clima. Com as palavras vc constrói imagens mais reais  que a própria realidade. Borges também sabia disso , óbvio.  Não pense que estou misturando as artes , só  comparando. Quando vc diz que alguém ama, deseja,  cria imagens mais fortes usando metáforas,  alusões.   Mas o cinema necessita de artes auxiliares, além de palavras,  para criar um clima.


Apollo e Hyacinthus






And his heart was stirred, it felt a father's kindness: such an emotion as the possessor of beauty can inspire in one who has offered himself up in spirit to create beauty. 




To leave seemed to the sufferer impossible,
to remain not less so.





Solitude gives birth to the original in us, 
to beauty unfamiliar and perilous 
to poetry.  

But also, 
it gives birth to the opposite: 
to the perverse, 
the illicit, 
the absurd.




the sere and ugly outside, hiding the embers of smouldering fire


Beauty makes people self-conscious.



He is delicate, he is sickly. He will most likely not live to grow old.

Besides, he deeply desired to live to a good old age, for it was his conviction that only the artist to whom it has been granted to be fruitful on all stage of our human scene can be truly great, or universal, or worthy of honour.




Pondered the mysterious harmony that must come to subsist between the individual human being and the universal law, in order that human beauty may result.


5 comentários:

  1. "Grandes golpes do destino pareciam ter-se abatido sobre essa cabeça quase sempre inclinada de lado, em atitude sofredora, e, no entanto, não fora uma vida difícil e agitada que esculpira aquele rosto, mas a arte.” Thomas Mann, Morte em Veneza

    ResponderExcluir
  2. Evandro, temos poema inspirado no livro para compor a postagem. Desde abril está pronto esperando o momento de discussão da obra. Enviei para o concierge. Grata.

    ResponderExcluir
  3. Foi muito feliz a escolha do livro, pois evidencia também nas entrelinhas o que está ocorrendo hoje com relação à COVID-19 (Sars-CoV-2). O Emmanuel escreveu tudo com precisão cirúrgica em poucas palavras e colocou o dedo direto na ferida. Eu não posso faltar aos encontros de discussão, estou perdendo o que há de melhor que são as múltiplas opiniões, algo maravilhoso entre nós e que nos direciona a saberes que nem imaginamos.

    ResponderExcluir
  4. O bom de reuniões neste formato é que os saberes vêm de diferentes pessoas, cada qual com sua visão de mundo e experiências próprias.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, é verdade... uma riqueza. Obrigada pelo link para o poema no meu blog.

      Excluir

Prezado leitor, em função da publicação de spams no campo comentários, fomos obrigados a moderá-los. Seu comentário estará visível assim que pudermos lê-lo. Agradecemos a compreensão.