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17 de dezembro de 2020

Nos confins do mundo: Harry Thompson


 Chegamos ao fim do mundo, quer dizer, no debate sobre o livro “Nos confins do mundo” de Harry Thompson. Se a situação e o ambiente no livro são, muitas vezes, hostis aos viajantes e a paisagem chega a tirar o fôlego das personagens, nosso momento atual de pandemia do Covid-19 não é menos surpreendente porque nos lança numa onda de caos cujos desdobramentos são imprevisíveis. Se pelo menos o capitão que comanda nosso Beagle fosse um FitzRoy! É inevitável tocar neste assunto porque essa situação marca uma mudança radical no nosso grupo, espero que esteja enganado, porque depois de mais de 21 anos de reuniões presenciais tivemos que nos reinventar para continuar nos encontrando, dessa vez surfando nas ondas da Internet. Ficamos quase 4 anos na Varanda da UFF, desde Maio de 2016.


É um mundo distópico este em que chegamos, não me refiro à Literatura, mas à vida real mesmo. Nós que prezamos tanto o Encontro presencial, o calor da convivência num lugar agradável como a varanda do Teatro da UFF, a polifonia de vozes queridas comentando o livro do mês, a conversa que continuava para muitos em alguma pizzaria da vizinhança, tivemos que nos encontrar, dessa vez, na web, por intermédio de um aplicativo de reuniões online, tudo para que nossas atividades de leitura não parassem. “Mais do que nunca o clube de leitura Icaraí deve continuar, como um ato de resistência”, alguns participantes me exortaram. Para quase todo mundo foi uma experiência inovadora, desafiadora, porque não temos familiaridade com essas ferramentas tecnológicas. O resultado de termos mantido a data da Reunião online foi que pessoas que nos frequentavam não conseguiram se conectar enquanto outras que andavam afastadas apareceram online, emocionando-nos pelo reencontro. É certo que perdemos muito, apesar da volta de algumas pessoas, muito gratificante, e que teremos que investir em muito aprendizado para recuperar o convívio, ainda que virtual, entre os participantes do Clube. Leva um tempo para acostumarmos com essa nova realidade e acredito que o número de acessos bem sucedidos aumentará com o tempo.

O livro em si já era um desafio para os leitores do Clube, com suas 700 páginas, e um tema que pareceu pouco literário a muitos. Apenas parecia porque o livro é muito bom literariamente. Algumas passagens são de uma força visual incrível, palmas para o tradutor, como a de algumas paisagens da Terra do Fogo, das tempestades glaciais e aquela que marcou de uma vez para sempre o coração do capitão FitzRoy dando-lhe a certeza de ter encontrado a mulher amada; uma gota de cera quente que caiu do grande candelabro central do salão no contorno dos seios de Mary O’Brien, enquanto eles dançavam, e foi descendo por sua alva pele, desaparecendo no V de seu vestido, sem que ela demonstrasse qualquer incômodo, apesar do rastro vermelho que se podia observar. Essa cena foi recorrente na memória do capitão pelos 5 anos seguintes de sua viagem ao redor do mundo. 

Apenas 7 participantes do clube de leitura conseguiram se conectar e, além de mim, ninguém mais tinha concluído a leitura do livro. Eduardo leu cerca de 300 páginas, Solange, Nair, Joana e Adriana retornaram ao Clube nesta versão online e não estavam a par das leituras programadas. Elenir tinha avisado que não estava podendo se engajar numa empreitada de 700 páginas por conta de alguns procedimentos oculares que a limitavam ler por muito tempo. O desafio desse Encontro era conectar-se e o tema do debate parece até uma alegoria dos tempos atuais, anunciando os tempos sombrios que viveríamos no momento de seu debate, já que o tema do livro em inglês deriva da obra “A tempestade” de Shakespeare “This thing of darkness”, que em tradução livre seria algo como “Essa coisa das trevas”. Comentamos brevemente a parte da viagem em que Darwin fica no Rio de Janeiro por 3 meses enquanto o capitão FitzRoy volta até Salvador para aferir seu mapa de viagem. Nesta estada carioca de Darwin ele faz um percurso pela região costeira fluminense até Conceição de Macabu, no que hoje é conhecido como Caminho de Darwin e que se tornou um roteiro turístico na região.  
Em relação às personagens e a alguns destaques relevantes para mim, particularmente, achei o capitão FitzRoy um comandante bastante solidário com seus subordinados e sensível na sua relação interpessoal. Nunca dizia que os aborígenes fossem selvagens, embora quisesse cristianizá-los. Ao contrário de Darwin que se comportava como um observador da realidade e da natureza, querendo compreendê-las sem interesse de intervir no que quer que seja. Inclusive, se mostrou um admirador do general Rosas, a quem FitzRoy chamou de assassino e exterminador dos nativos. Chamou-me a atenção o relato sobre o 10º filho de Charles Darwin, já no fim do romance, que, pela descrição feita, parece ter tido síndrome de Down, independente do fato de sua casa ser conhecida como Down House, certamente nomeada dessa forma por outro motivo. Além da síndrome de Down, Charles Waring, o 10º filho, parece ter tido síndrome de West cujas comorbidades fez com que ele não resistisse a uma onda de febre escarlatina quando tinha 1 ano e 9 meses, idade vulnerável para quem sofre de West. Um fato que despertou o interesse de alguns cliceanos foi a menção a uma data que supostamente seria cientificamente calculada como sendo a da criação divina de todas as espécies de plantas e animais terrestres: Sábado - 30/10/4004 AC. Em relação a isso, vale a pena ressaltar que o serumano tem um impulso natural pela busca da “verdade” e até o século XVI essa verdade era um monopólio da Igreja. Esse privilégio começou a acabar, no ocidente, no século XVII com Francis Bacon e se consumou com David Hume no século XVIII, os pais da Ciência moderna. A história de “Nos confins do mundo” começa na primeira quarta parte do século XIX, quando a revolução científica já estava consolidada e a Ciência questionou o status da verdade pela fé. O termo “científico” muitas vezes é entendido como verdadeiro e algumas pessoas que crêem na Bíblia querem usá-lo neste sentido, o que é indevido. Pode-se até acreditar na verdade bíblica pela fé, mas isso não torna o que lá é narrado como científico. Quem acredita na verdade pela fé, acredita nos eventos bíblicos e é aí que entra a data da criação do mundo como sendo 30 de Outubro do ano 4004 A.C.  Nosso calendário é uma convenção social estabelecida pelo papa Gregório no ano de 1582 para uniformizar os calendários do mundo cristão, de forma que a Páscoa caísse sempre no primeiro Domingo de Lua Cheia após o equinócio do outono no hemisfério sul, repetindo exatamente o momento cósmico da ressurreição de Jesus. O Papa determinou que o dia seguinte ao 4 de outubro de 1582, uma quinta-feira, seria o dia 15 de outubro de 1582, uma sexta-feira, deixando de existir os dias de 5 a 14 de outubro daquele ano. Isso foi feito para que o Nascimento de Jesus fosse o marco zero do Calendário. Isso definido, um bispo, chamado Ussher, resolveu calcular o dia da criação baseado nos eventos relatados na Bíblia, e foi aí que chegou naquela data de 30 de Outubro de 4004 A.C. Se você crê na Bíblia tem que concordar com ele contra todas as evidências contrárias que Darwin levanta no nosso livro do mês. Isso é muito legal neste livro porque o protagonista dele não é o Darwin mas o capitão FitzRoy, uma personagem fascinante que, ao contrário do gênio naturalista, é criacionista. 

Ainda nas sincronicidades das leituras do CLIc, desta feita entre este livro e a atual situação do Covid-19, vale lembrar uma frase de um dos protagonistas do livro: "Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças". – Charles Darwin. Outra sincronicidade que pode servir de esperança para quem tem fé se refere ao fato de que neste ano a Páscoa cristã coincide com a Páscoa judaica que marcou o fim das 10 pragas no Egito e que libertou os hebreus da escravidão sendo que na última praga o povo teve que se trancar em casa até que a peste passasse.




Naquele triste momento
de muita preocupação,
me trouxeram grande alento
amigos do coração.

(Elenir)




Vera em Punta Arenas - Patagônia chilena
Ao fundo, replica do Beagle

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09/04/2020 - 19h30

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- Todos aqueles espécimes inigualáveis perdidos,  assim como os meios para interpretá-los , mas você ainda tem a obra de Jane Austen! Ora, ainda vamos transformar você  numa peixeira fofoqueira! Vamos lá,  Filós, diga por que diabos tem essas frivolidades em seu poder.

_ "A minha irmã Caroline me mandou.  Parece que a minha família,  sei lá por que, acha que  você é igual ao comandante Wentworth. E desde ontem acho que estão certos."


Jemmy Button, um dos adotados pelo capitão

https://youtu.be/wryz2pPvtSk





















By Bete Quireza

"Navegamos numa onda de caos."






An 1857 photograph
of 48-year-old Emma Darwin
 and her youngest child, Charles Waring


Keynes' book focuses on the death of 10-year-old Annie Darwin in 1851 after a long illness, probably tuberculosis, and he speculates that the pain of those events shaded Charles' ideas during the period of intellectual turmoil when he was formulating and refining the theories that underpin The Origin of Species (1859). Another Darwin daughter, Mary, died at 3 weeks of age in 1842; the Darwins also lost their youngest child, Charles Waring, who was born in December of 1856 when Emma was 48 years old.
From early on, it was clear that the Darwin's last infant was not normal. There was no name yet in 1856 for the baby's condition. John Langdon Haydon Down had not yet been employed by the Earlswood Asylum in Surrey, and Down would not publish his first paper on what he and others would call “mongolism” (the result of a wildly erroneous Victorian-era racial theory) for another 10 years (Down JLH. Observations on an ethnic classification of idiots. Clinical lectures and reports by the medical and surgical staff of the London Hospital.1866;3; 259 -262).  The only extant photograph of Charles Waring was taken by the eldest Darwin son, William, with a camera that William received for his 17th birthday. The image is grainy and underdeveloped but reveals suggestive facial features. Darwin père, always a careful observer, took meticulous notes on the development of all of his children; several of the descriptions of Charles Waring are potentially consistent with an infant with trisomy 21: “He was small for his age and backward in walking and talking.... He was of a remarkable sweet, placid and joyful disposition, but had not high spirits.... He often made strange grimaces and shivered, when excited.... He would lie for a long time placidly on my lap looking with a steady and pleased expression at my face... making nice little bubbling noises as I moved his chin.”
In addition to the baby's facial features and placid disposition, Emma's advanced maternal age also supports a retrospective diagnosis of Down syndrome. For a woman older than 45 years, the risk of giving birth to an infant with Down syndrome exceeds 1 in 30.
In the summer of 1858, when Charles Waring was 19 months old, an epidemic of scarlet fever swept through the region surrounding the village of Downe. The Darwin's oldest surviving daughter, Henrietta, had been chronically unwell since a bout with diphtheria the year before, and her parents were anxious about her vulnerability. But in the end it was the baby who became seriously ill. On June 25, 1858, Darwin shared his growing concern about his youngest child's condition in a letter to a friend, the geologist Charles Lyell—a letter chiefly written to ask Lyell for advice about asserting intellectual priority over Alfred Russel Wallace on the mechanism of evolution: “I fear we have a case of scarlet fever in House with Baby. Etty [Henrietta] is weak but is recovering. My dear good friend forgive me. This is a trumpery letter influenced by trumpery feelings.”
On July 1, 1858, when the Linnean Society in London heard the sensational first announcement of Darwin's (and Wallace's) theory of natural selection, Darwin was not in attendance. He was at the funeral of his youngest son, who had died on June 28. (Fonte)


"A vastidão fala a língua dos mistérios
que ensina dúvidas terríveis."
(Shelley)





"A substância da minha narrativa, Sr. Darwin, é que os neozelandeses são um povo inteligente e brioso cujo modo de vida está ameaçado de destruição pelo que chamamos de civilização cristã."





"Está cientificamente provado que Deus criou todas as espécies de plantas e animais terrestres no mesmo dia: 

Sábado

30/10/4004 AC"







Corcovado: Augustus Earle









Essa coisa de trevas admito que é minha 
(A tempestade, Ato V, Cena 1)


Book



4 comentários:

  1. Que legal saber que vocês se reuniram online para comentário do livro do mês. A pandemia tem feito mudanças e vai deixar outras que no futuro serão conhecidas. A telemedicina já está em atividade até o término da mesma, mas eu estou apostando que vai continuar porque está dando certo. O CLIc (Quem diria!) reuniu de forma inimaginável através de vídeos e pessoas de diversas localidades. As pessoas estão assumindo exercícios físicos de forma autônoma em suas próprias casas. E o trabalho remoto que já acontecia em alguns setores vai tomar a sua forma e desenvolver ainda mais. Portanto, estamos em pleno tempo de mudanças. Apertem os cintos porque muitas outras coisas boas vão acontecer. Claro, não vamos mencionar o tempo de crise que já inaugurou e é inevitável. Enfim, parabéns ao Clube de Leitura Icaraí pela nova modalidade de reunião online! Abraços!

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  2. Verdade... logo eu que queria tanto uma versão nova do CLIc... Mas, fique tranquilo porque terminei de ler ontem o livro de junho - Morte em Veneza - e já estou pronta a iniciar o de maio. Fiquei bem impressionada com Thomas Mann e toda a forma detalhada de escrita. Creio que dará uma boa e calorosa discussão no campo da psicanálise (no grupo tem representantes), religião, política e outros.

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  3. Evandro, querido, maravilhoso relato. Aprender sobre o calendário é muito interessante. Questionar naturalismo e criacionismo também. E, a cereja do bolo, fazer um paralelo entre a pandemia e a necessidade de nos adaptarmos para sobreviver, física e emocionalmente. Para mim será uma oportunidade de participar novamente das reuniões do Clic. A presença física virá com o tempo, mas a do coração chega primeiro. Que bom que a tecnologia pode ser uma aliada nesses tempis difíceis. Estamos juntos.

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