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14 de julho de 2018

A noite da espera - o lugar mais sombrio: Milton Hatoum

"Um riso cansado...
Um sussurro de saudade...
Tão longe meu vô!..."

"Cerca-me o silêncio...
 Prédios escondem o sol...
Cidade vazia?..."


Martim e a solidão em Brasília.
(Haicais de Elenir)


OS DESERTOS DO AMOR

Tradução de Lucas Bertolo

Estes escritos são de um homem, todo jovem, cuja vida tem desenvolvido-se não importa onde; sem mãe, sem país, indiferente a tudo que se conhece, fugindo de toda força moral, como outros jovens lastimáveis já fugiram. Mas, ele, tão entediado e chate- ado, não fez mais que levar-se à morte como a um pudor terrível e fatal. Não tendo amado as mulheres – embora pleno de sangue! – teve sua alma e seu coração, toda a sua força, educados nos erros estranhos e tristes. Dos sonhos seguintes – seus amores! – que viriam-lhe em suas camas ou nas ruas, de sua continuação e de seu fim, emergiriam do- ces considerações religiosas. Talvez lembre-se do contínuo sono dos Maometanos le- gendários – corajosos e ainda assim circuncidados? Mas, como este bizarro sofrimento possui uma autoridade inquietante, há de desejar que esta Alma, perdida entre nós, que- rendo a morte, ao que parece, reencontre nesse instante sérias e dignas consolações!

É, decerto, o mesmo campo. A mesma casa rústica dos meus pais: a mesma sala donde se vê nas partes de cima das portas currais chamuscados, com armas e leões. Para o jantar, há um salão, com velas e vinhos e madeiras rústicas. A mesa de jantar é bem grande. As serventes! Eram várias, até quando recordo-me. Havia também um dos meus antigos jovens amigos, padre agora, e assim vestido: o fez para ser mais livre. Recordo- me de seu quarto púrpura, de vidros de papel amarelo; e seus livros, escondidos, que molharam-se no oceano! Eu estava abandonado, nesta casa de campo sem fim: lendo na cozinha, secando o barro de minhas roupas diante dos anfitriões, durante as conversas de salão: comovido até a morte pelo murmúrio do leite matinal e pela noite do último século.


Estava em um quarto muito sombrio: que fazia eu? Uma servente veio até mim: poderia dizer que era um pequeno cão: embora fosse bonita, e de uma nobreza maternal inexprimível para mim: pura, familiar, toda charmosa! Ela beliscou-me o braço. Não lembro-me muito bem de seu rosto: e não é para lembrar de seu braço, cuja pele retorcia entre meus dois dedos; nem de sua boca, que a minha tomou como uma pequena onda desesperada, minando algo sem fim. Eu derrubei-a num cesto de almofadas e de toalhas de navio, num canto escuro. Lembro-me somente de suas calças de rendas brancas. Logo, o desespero, a parede a tornar-se vagamente sombras das árvores e, eu, abismado na tristeza amorosa da noite.

Desta vez, trata-se da Mulher que vi na cidade, que saudei e que me saudou. Es- tava num quarto sem luz. Vieram dizer-me que ela estava em minha casa; então, a vi na minha cama, toda para mim, sem luz: comovi-me, e muito, porque era a casa de minha família: também fui tomado por uma aflição; estava em farrapos, ela, mundana, que se entregava, devia-se ir! Uma aflição sem nome: eu a tomei, e a deixei cair fora da cama, quase nua; e, na minha fraqueza indescritível, sobre ela caí, arrastando-nos sobre os ta- petes sem luz. A lâmpada da família incandescia todos os quartos vizinhos. Então a mu- lher desapareceu. Derramei mais lágrimas do que Deus poderia pedir.

Saí à cidade sem fim. Ó Cansaço! Inundado na noite surda e na fuga da felicida- de. Era como uma noite de inverno, com uma neve para sufocar o mundo decididamen- te. Os amigos com quem gritava: “onde ela está?”, respondiam falsamente. Estava dian- te dos vidros onde ela ia todas as noites: corria em um jardim sepultado. Fui empurrado. Chorava enormemente com tudo isto. Enfim, desci a um lugar cheio de poeira, e, senta- do sobre vigas, deixei terminar com a noite todas as lágrimas do meu corpo. – Minha exaustão regressando sempre, no entanto.

Eu compreendi que essa era sua vida de todos os dias, que a torre da bondade levaria mais tempo para reproduzir-se do que uma estrela. Ela não retornou, e nunca mais voltará, a Adorável que visitou minha casa – coisa que jamais presumiria. Em ver- dade, aquela vez, eu chorei mais que todas as crianças do mundo.


Fonte








O lugar mais sombrio - vol. 1










SINOPSE


Nove anos após a publicação de Órfãos do Eldorado, Milton Hatoum retorna à forma da narrativa longa em uma série de três volumes na qual o drama familiar se entrelaça à história da ditadura militar para dar à luz um poderoso romance de formação.
Nos anos 1960, Martim, um jovem paulista, muda-se para Brasília com o pai após a separação traumática deste e sua mãe. Na cidade recém-inaugurada, trava amizade com um variado grupo de adolescentes do qual fazem parte filhos de altos e médios funcionários da burocracia estatal, bem como moradores das cidades-satélites, espaço relegado aos verdadeiros pioneiros da capital federal, migrantes desfavorecidos.
Às descobertas culturais e amorosas de Martim contrapõe-se a dor da separação da mãe, de quem passa longos períodos sem notícias. Na figura materna ausente concentra-se a face sombria de sua juventude, perpassada pela violência dos anos de chumbo. Neste que é sem dúvida um dos melhores retratos literários de Brasília, Hatoum transita com a habilidade que lhe é própria entre as dimensões pessoal e social do drama e faz de uma ruptura familiar o reverso de um país cindido por um golpe.


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