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30 de novembro de 2020

O Outro Pé da Sereia: Mia Couto




Com braços abertos,
o mundo quer abraçar.
Mulher bela e ousada!
(Elenir)




Ao sabor do vento,
lençóis bailam nos varais.
Me trazem a infância

O livro é um barco.
Ao outro lado do mundo
me leva, e a mim própria.

(Elenir)





A costa indiana é agora uma linha flutuando no horizonte. A nau tornou-se no último lugar do mundo. À volta tudo é água, transbordação de rios e mares. O navio é uma ilhota habitada por homens e os seus fantasmas.

... Inclinado na cesta da gávea, o marinheiro anunciava que a viagem já não teria mais retorno.

- Daqui em diante, nenhuma ave mais haverá.

Um vazio pesou sobre o estômago do sacerdote português. Quando saíra de Goa, ainda na proteção do estuário, a viagem surgia como um caminho dócil. Mas quando o mar se desdobrou em oceano e o horizonte todo se liquefez, lhe veio uma espécie de tontura, a certeza de que o chão lhe fugira e a nau voava sobre um abismo. Silveira não tinha dúvida: chegara ao irreversível momento em que a água perde o pé e o mar abandona o suave maneirar dos rios. Dali em diante, o mundo se resumiria àquela nau, rompendo caminho entre domínios que eram mais do Diabo que de Deus.

Em “O Outro Pé da Sereia”, o moçambicano Mia Couto, alterna entre passado e presente para nos apresentar Moçambique. Em 1560, revivemos a colonização portuguesa, acompanhando a expedição do jesuíta D. Gonçalo da Silveira (personagem histórico), da saída de Goa, na Índia, até a fronteira entre Zimbabwe e Moçambique, nas terras do chamado reino Monomotapa, da África do século XVI. A partir do resgate de fontes históricas, o autor romanceia a história do jesuíta em sua missão de conversão e moralização do reino e de seu imperador. Em 2002, nos deparamos com o retrato de uma Moçambique que, após a independência em 1975, foi assolada por quase 16 anos de guerra civil (1977 - 1992) e que luta para se erguer.




Escrevo na penumbra quase total do porão onde me aprisionaram. O escuro até me ajuda: afinal, esta carta é um adeus. Ou, quem sabe, um agradecer aos deuses? Navegamos entre perigos e incertezas. Salvamo-nos de fogos e tempestades. Contudo, esta viagem não se está fazendo entre a Índia e Moçambique. É sempre assim: a verdadeira viagem é a que fazemos dentro de nós. Quem conduz o barco, porém, não é o timoneiro. Quem guia o leme é a Kianda, a deusa das águas.

Kianda, Mama Wati ou Nzuzu é a deusa que mora em águas limpas. “... no leito do rio havia um lugar sem fundo, onde a propria água se afundava, afogada nos abismos. Nessas profundezas morava Nzuzu, a divindade do rio. De quando em vez, uma moça desaparecia nas águas. Não morria. Apenas permanecia residindo nos fundos lodosos, aprendendo a arte de ser peixe e os sortilégios da adivinhação. Ficava anos nessa submersa moradia até que, um dia, reemergia e se apresentava às famílias para exercer então, a profissão de curandeira.” “... Ela vive com a nyoka, a serpente. Quando a água fica suja, a serpente sai a espalhar maldades e feitiços”. (Acima: Mami Wata, de Moyo Ogundipe, 1999).

Quem nos leva nesta viagem é a personagem que tem “corpo de rio e nome de canoa”, Mwadia Malunga. Através dela, somos apresentados às personagens da atualidade: Zero Madzero, o pastor de burros e cabritos, que vive em Antigamente, e carrega em si a ambigüidade da presença e da ausência, do ser vivente e de um fantasma; Constança Malunga, a matriarca que revela a ligação de Mwadia com Nzuzu, a deusa das águas límpidas; Lázaro Vivo, o adivinho que faz a ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos, entre o universo sagrado da tradição e o da modernidade; Benjamin, o afro-americano que busca sua origem ancestral; e outros.

Nesses últimos dias, Mwadia fechava-se no sótão e espreitava a velha documentação colonial. Agora, ela sabia: um livro é uma canoa. Esse era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma.

... Disto tudo sabia Constança quando pediu o seguinte a sua filha mais nova:

- Agora, leia para mim. Eu também quero ir nessa viagem ...

Mwadia aproxima culturas, religiões, momentos históricos, como uma embarcação capaz de ligar culturas e viajantes que entrecruzam fronteiras temporais, geográficas e interiores às personagens.

A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores” .

Certo excesso de frases de efeito, e elementos temáticos (silêncio e palavras, realidade e delírio; lucidez e loucura; razão e emoção; vida e morte; passado e presente; tradição e modernidade, escravidão, servidão feminina, simbolismos, mitificação, mestiçagem, incesto, aids) por vezes quebram a fluidez da leitura e nos lembram da presença do autor e de sua própria viagem. Porém, não há dúvidas de que Mia Couto domina os mistérios da contação, e na maior parte do tempo consegue nos envolver e nos prender nos meandros da trama. A cada momento somos surpreendidos por segredos e questões para as quais não são dadas respostas. E os elementos metafóricos são interpretados pelas personagens de maneira quase sempre tão duvidosa que exigem do leitor sua própria interpretação da obra. A minha, ainda não a tenho, mas penso que viver ausências, seja as de Antigamente ou as de Vila Longe, não seja viver. Nada simples se erguer, mas prefiro seguir o rio da vida e plagiar a personagem Rosie: como se diz lá no Brasil, “Sacode a poeira e dá a volta por cima”, pois, bom é “viver e não ter a vergonha de ser feliz”.

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