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15 de janeiro de 2024

Trópico de Câncer: Henry Miller

Henry Miller: "Quando você não pode criar, pode trabalhar "


Em 1932, o famoso escritor e pintor Henry Miller, criou um cronograma de trabalho que listava seus “Mandamentos” para ele seguir como parte de sua rotina diária.

1. Trabalhe em uma coisa de cada vez até terminar.
2. Não comece mais novos livros, não adicione mais novos materiais.
3. Não fique nervoso. Trabalhe com calma, alegria e imprudência até no que estiver à mão.
4. Trabalhe de acordo com o programa e não de acordo com o humor. Pare na hora marcada!
5. Quando você não pode criar, pode trabalhar.
6. Cimente um pouco todos os dias, em vez de adicionar novos fertilizantes.
7. Mantenha-se humano! Veja pessoas, vá a lugares, beba se lhe apetecer.
8. Não seja um cavalo de tração! Trabalhe apenas com prazer.
9. Descarte o programa quando lhe apetecer - mas volte no dia seguinte. Concentrado. Estreitar. Excluir.
10. Esqueça os livros que você deseja escrever. Pense apenas no livro que você está escrevendo.
11. Escreva primeiro e sempre. Pintura, música, amigos, cinema, tudo isso vem depois.

(Alexandre Boure)

* * *

CLIc na foto do escritor ao lado para ler a crítica feita por  W.B., que foi quem indicou a leitura de "Trópico de Câncer" para debate no Clube de Leitura Icaraí. 






"Não sei vocês, mas gosto muito de ler um livro que eu saiba que outras pessoas estão lendo ao mesmo tempo para ouvir diferentes interpretações. Essa troca é interessante!"

Leia a sinopse do livro segundo Andreia Borges visitando seu blog  e conheça também seu mar de variedade no Facebook.




Trópico de Câncer, romance do americano Henry Miller, foi o tema de debate no Clube de Leitura Icaraí no dia dos namorados. Polêmico, o livro só foi lançado no país de origem do autor 30 anos depois de ser editado. O evento aconteceu na sexta-feira, dia 12, às 19h, na Livraria Icaraí (Rua Miguel de Frias, 9, em Niterói), com entrada gratuita.



Considerado como uma grande influência para o movimento beatnik, o livro tem características autobiográficas e narra a boemia da cena parisiense do começo do século. Miller havia emigrado para a França na década de 1920 e suas experiências como estrangeiro servem de inspiração para o livro. Trópico de Câncer mostra uma cidade multifacetada, com seus lugares da boemia, da arte e da prostituição. No meio de grandes intelectuais e artistas, encontram-se também figuras decadentes e ambientes lúgubres e cruéis. Miller revela uma Paris menos romântica, da miséria e da prostituição, mas que ainda assim encanta e vicia os visitantes.



"Como tantos escritores que emigraram para a Paris dos anos 1920-30, o norte-americano Henry Miller experimentou na capital francesa tudo o que há de bom e de ruim na condição de exilado voluntário: o desenraizamento, a liberdade, o desespero, a vida anárquica e boêmia, a falta de dinheiro.

Narrado em primeira pessoa, Trópico de Câncer é o resultado literário dessa experiência, um confronto direto entre o vigoroso individualismo de Miller e o mundo caótico e ameaçador do entreguerras.

Sem obedecer a uma sequência linear, o romance se estende pelos bulevares da cidade, entra em suas pensões baratas, se embebeda nos cafés ordinários, convive com uma multidão de artistas e intelectuais igualmente desenraizados e sem dinheiro, dorme com prostitutas e mulheres solitárias. O ritmo é do relato rápido, ansioso, de quem quer chegar à medula das coisas.

Tendo sido acusado de pornográfico e obsceno quando foi lançado, o livro de Henry Miller pode, hoje, ser lido, sem as lentes do preconceito, como um dos mais intensos testemunhos literários de uma geração que mergulhou de cabeça na vertigem do século XX."




'Trópico de Câncer', publicado no ano de 1934, em Paris, foi imediatamente proibido em todos os países de língua inglesa. Tachado como pornográfico, o livro, assim como seu sucessor Trópico de Capricórnio, só foi liberado nos Estados Unidos e na Inglaterra nos anos 60, aclamado como parte da revolução sexual. Polêmicas à parte, Trópico de Câncer foi celebrado pelos maiores intelectuais da época e se tornou um dos grandes clássicos da literatura americana.

Samuel Beckett o saudou como 'um evento monumental da história da escrita moderna'; George Orwell, mesmo não compartilhando dos valores morais de Miller, após a leitura de Trópico de Câncer reconheceu o autor como 'o único escritor de prosa com algum valor que apareceu entre as raças anglofônicas em algum tempo'. Outros nomes como T. S. Eliot, Ezra Pound e Lawrence Durrell também notaram rapidamente o talento de Miller.

O livro traz um relato autobiográfico e idiossincrático de Miller, que chega a Paris após abandonar nos EUA um casamento arruinado e uma carreira estagnada. Mesmo sem um centavo no bolso, Henry Miller é apresentado à boemia francesa e redescobre seu próprio talento em dias e noites de liberdade e alegria sem fim.



Nunca também em minha vida havia trabalhado sem pagamento. Senti-me livre e acorrentado ao mesmo tempo - como a gente se sente imediatamente antes da eleição, quando todos os crápulas já foram indicados como candidatos e nos apelam para que votemos no homem certo. Senti-me como um homem assalariado, como um pau para toda obra, como um caçador, como um pirata, como um escravo de galé, como um pedagogo, como um verme e um piolho. Era livre, porém meus membros estavam acorrentados. Uma alma democrática, com um vale para refeição grátis, mas sem poder de locomoção, sem voz. 





"Quando olho para dentro dessa boceta fodida de puta sinto o mundo inteiro embaixo de mim, um mundo vacilante e desmoronante, um mundo gasto e polido como um crânio de leproso. Se houvesse um homem que ousasse dizer tudo quanto pensa deste mundo, não lhe restaria um palmo quadrado de terra onde ficar. Quando um homem aparece, o mundo cai sobre ele e quebra-lhe a espinha. Restam sempre em pé pilares apodrecidos demais, humanidade supurada demais para que o homem possa florescer. A superestrutura é uma mentira e o alicerce é um medo enorme e trêmulo. Se com intervalos de séculos aparece um homem de olhar desesperado e faminto, um homem que vira o mundo de cabeça para baixo a fim de criar uma nova raça, o amor que ele traz ao mundo é transformado em fel e ele se torna um flagelo."




Fazia frio borrascoso e úmido contra o qual não havia proteção a não ser um espírito forte. Dizem que a América é um país de extremos, e é verdade, que o termômetro registra graus de frio praticamente desconhecidos aqui; mas o frio do inverno de Paris é um frio desconhecido na América, é um frio psicológico, um frio tanto interior como exterior. Se nunca há gelo aqui, também nunca há degelo. Assim como se protegem contra a invasão de sua vida privada, com seus altos muros, seus ferrolhos e venezianas, suas "concierges" resmungonas, xingadoras e desleixadas, as pessoas também aprenderam a proteger-se contra o frio e o calor de um clima estimulante e vigoroso. Fortificaram-se. Proteção é a palavra-chave. Proteção e segurança. Para poderem apodrecer confortavelmente. Em uma noite úmida de inverno não é necessário olhar um mapa para descobrir a latitude de Paris. É uma cidade do norte, posto avançado construído sobre um pântano cheio de crânios e ossos. Ao longo dos bulevares há uma fria imitação elétrica de calor. Tout Vá Bien em raios ultravioletas que fazem os fregueses dos cafés Dupont parecerem cadáveres gangrenados. Tout Vá Bien!

Esse é o lema que alimenta os desconsolados mendigos que andam para cima e para baixo a noite inteira sob o chuvisco dos raios ultravioletas. Onde há luz há um pouco de calor. A gente esquenta-se olhando os bastardos gordos e seguros que engolem seus grogues, seus cafés pretos fervendo. Onde há luz há gente nas calçadas, acotovelando-se, emitindo um pouco de calor animal através de sua roupa de baixo suja e de seu hálito fétido e praguejante.




Menciono Tânia agora porque ela acaba de voltar da Rússia - havia poucos dias. Sylvester ficou lá para ver se arranjava um emprego. Abandonou completamente a literatura. Dedicou-se à nova Utopia. Tânia quer que eu volte para lá com ela, para a Criméia preferivelmente, e comece vida nova. Tomamos bela bebedeira outro dia no quarto de Carl, discutindo as possibilidades. Eu queria saber o que poderia fazer para ganhar a vida lá - se poderia ser revisor, por exemplo. Ela disse que não precisava preocupar-me com o que iria fazer - eles me arranjariam um emprego desde que eu fosse sério e sincero. Tentei parecer sério, mas apenas consegui parecer patético. Eles não querem ver caras tristes, na Rússia; querem que você seja alegre, entusiástico, sereno, otimista. Para mim pareceu muito semelhante à América. Não nasci com essa espécie de entusiasmo.

The Music Lesson Matisse
henri matisse

Em todo poema de Matisse há a história de uma partícula de carne humana que rejeitou a consumação da morte. Toda a extensão de carne, dos cabelos às unhas, expressa o milagre da respiração, como se o olho interior, em sua sede de maior realidade, tivesse transformado os poros da carne em famintas bocas videntes. Por qualquer visão que se passe há o cheiro e o barulho de viagem. É impossível fitar mesmo um canto de seus sonhos sem sentir a elevação da onda e o frio dos borrifos no ar. Ele se mantém no leme perscrutando com firmes olhos azuis a pasta do tempo. Em que cantos distantes não lançou seu longo e enviesado olhar? Olhando do vasto promontório do seu nariz para baixo, contemplou tudo - as Cordilheiras caindo no Pacífico, a história da diáspora escrita em papel velino, venezianas estriando o frufru da praia, o piano curvando-se como uma concha, corolas emitindo diapasões de luz, camaleões serpeando embaixo da prensa de livros, serralhos extinguindo-se em oceanos de poeira, música saindo como fogo da cromosfera oculta da dor, espórios e madréporas frutificando a terra, umbigos vomitando sua brilhante semente de angústia... Ele é um sábio brilhante, um vidente dançarino que, com um golpe do pincel, remove o feio patíbulo a que o corpo do homem está acorrentado pelos fatos incontroversos da vida. É ele quem, se algum homem hoje possui esse dom, sabe onde dissolver a figura humana, tem a coragem de sacrificar a linha harmoniosa a fim de captar o ritmo e o murmúrio do sangue, toma a luz que se refratou em seu interior, e deixa-a inundar o teclado de cor. Por trás das minúcias, do caos, da irrisão da vida ele percebe o padrão invisível; anuncia suas descobertas no pigmento metafísico do espaço. Nenhuma procura de fórmulas, nenhuma crucifixão de idéias, nenhuma compulsão a não ser a de criar. Mesmo quando o mundo se desmorona existe um homem que permanece no centro, que se torna mais solidamente fixado e ancorado, mais centrífugo à medida que se acelera o processo de dissolução.


Henri Matisse, The Dance I, 1909, Museum of Modern Art, New York

É somente mais tarde, durante o dia, quando me encontro numa galeria de arte na Rue de Sèze, cercado pelos homens e mulheres de Matisse, que sou novamente arrastado de volta para os limites apropriados do mundo humano. No limiar daquele grande salão cujas paredes estão agora em chamas, paro por um momento para recuperarme do choque que se experimenta quando o habitual cinzento do mundo é rasgado e a cor da vida salta para a frente em canto e poema. Encontro-me em um mundo tão natural, tão completo, que fico perdido. Tenho a sensação de estar mergulhado no próprio plexo da vida, no ponto focal seja qual for o lugar, posição ou atitude em que me coloque. Perdido como quando me afundei no centro de um bosque em formação e, sentado na sala de jantar daquele enorme mundo de Balbec, compreendi pela primeira vez a profunda significação daquelas quietudes interiores que manifestam sua presença através do exorcismo da vista e do tato. Em pé no limiar do mundo que Matisse criou, voltei a experimentar a força da revelação que permitiu a Proust deformar tanto o quadro da vida, que somente aqueles que, como ele próprio, são sensíveis à alquimia do som e do sentido, são capazes de transformar a realidade negativa da vida nos contornos substanciais e significativos da arte. Só os que são capazes de admitir a luz em suas entranhas podem traduzir o que há no coração.

Alguém já fez isso antes?... Por que diabo está sorrindo? Parece ingenuidade?" Estou sorrindo porque sempre que ele toca na questão desse livro que vai escrever um dia, as coisas assumem aspecto incongruente. Basta dizer "meu livro" e imediatamente o mundo se reduz às dimensões privadas de Van Norden e Cia. O livro precisa ser absolutamente original, absolutamente perfeito. Por isso, entre outras coisas, torna-se-lhe impossível começar a escrevê-lo. Logo que tem uma ideia começa a pô-la em dúvida. Lembra-se de que Dostoiévski a utilizou, ou Hamsun ou algum outro. "Não estou dizendo que quero ser melhor do que eles, mas quero ser diferente", explica. E assim, ao invés de cuidar de seu livro, lê escritor após escritor a fim de ter absoluta certeza de que não vai invadir a propriedade privada deles. E quanto mais lê, mais desdenhoso se torna. Nenhum deles é satisfatório; nenhum chegou àquele grau de perfeição que ele impôs a si próprio. E esquecendo completamente que não escreveu sequer um capítulo, fala a respeito deles com condescendência, como se existisse uma estante de livros exibindo seu nome, livros com que todos estão familiarizados e cujos títulos é portanto supérfluo mencionar. Embora nunca tenha mentido abertamente sobre esse fato, é evidente que as pessoas com quem conversa a fim de arejar sua filosofia privada, suas críticas e suas queixas têm como certo que por trás de suas observações imprecisas ergue-se um sólido conjunto de obras. Especialmente as virgens jovens e tolas que atrai a seu quarto com o pretexto de ler-lhes seus poemas, ou o pretexto ainda melhor de pedir-lhes conselhos. Sem o menor sentimento de culpa ou constrangimento entrega-lhes um pedaço de papel sujo no qual rabiscou algumas linhas - a base de um novo poema, como diz - e com absoluta seriedade pede-lhes sincera opinião. Como em geral elas nada têm a apresentar a título de comentário, absolutamente desnorteadas pela completa falta de sentido das linhas, Van Norden aproveita a ocasião para expor-lhes sua opinião sobre a arte, opinião, é desnecessário dizer, criada espontaneamente para adaptar-se à circunstância.


E quanto mais substancial, quanto mais sólido se tornava o meu núcleo, mais delicada e extravagante parecia a realidade próxima e palpável para fora da qual eu estava sendo espremido. Na mesma proporção em que me tornava cada vez mais metálico, a cena diante de meus olhos tornava-se inflada. 

O estado de tensão era tão finamente traçado agora, que a introdução de uma única partícula estranha, até mesmo uma partícula microscópica, como disse, teria destroçado tudo. Por uma fração de segundo experimentei talvez aquela completa clareza que, segundo afirmam, é dado ao epiléptico conhecer. Naquele momento, perdi completamente a ilusão de tempo e espaço: o mundo desdobrou seu drama simultaneamente ao longo de um meridiano que não tinha eixo. Nessa espécie de eternidade de fácil disparo senti que tudo era justificado, supremamente justificado; senti as guerras que haviam deixado dentro de mim esta polpa e esta ruína; senti os crimes que lá estavam fervendo para emergir amanhã em gritantes manchetes; senti a miséria que se estava moendo com pilão e almofariz, a longa e monótona miséria que escorre em lenços sujos. No meridiano do tempo não há injustiça: há apenas a poesia do movimento criando a ilusão de verdade e drama. Se a qualquer momento e em qualquer lugar encararmos frente a frente o absoluto, desaparece aquela grande simpatia que fez homens como Gautama e Jesus parecerem divinos; o monstruoso não é que homens tenham criado rosas com este monte de esterco, mas que, por uma ou outra razão, tenham desejado rosas. Por uma ou outra razão o homem procura o milagre e, para realizá-lo, chafurda no sangue. 

Corrompe-se com idéias, reduz-se a uma sombra, se por um único segundo de sua vida pode fechar os olhos à hediondez da realidade. Tudo se suporta, desgraça, humilhação, pobreza, guerra, crime, ennui - na crença de que, da noite para o dia, algo acontecerá, um milagre, que tornará a vida tolerável. E durante todo o tempo um medidor está correndo lá dentro e não há mão que possa alcançá-lo lá e fazê-lo parar. Durante todo o tempo alguém está comendo o pão da vida e bebendo o vinho, algum padre sujo e gordo como uma barata que se esconde na adega para emborcá-lo, enquanto lá em cima, na luz da rua, uma hóstia fantástica toca os lábios, e o sangue é pálido como a água. E do interminável tormento e miséria nenhum milagre surge, nenhum vestígio microscópico sequer de alívio. Só idéias, pálidas, e atenuadas idéias que precisam ser engordadas por carnificina; idéias que saem como bílis, como as entranhas de um porco quando se abre a carcaça. 

E assim penso que milagre não seria se este milagre que o homem espera eternamente, nada mais viesse a ser do que aqueles dois enormes troços que o fiel discípulo lançou no bidê. Se no último momento, quando a mesa do banquete estiver arrumada e os címbalos soarem, aparecer de repente e absolutamente sem aviso, uma salva de prata na qual até mesmo os cegos possam ver que há nada mais nada menos que dois enormes montes de bosta. Isso, creio eu, seria mais milagroso do que tudo quanto o homem tem esperado. Seria milagroso porque seria o não sonhado. Seria mais milagroso do que o sonho mais louco porque qualquer um podia imaginar a possibilidade, mas ninguém jamais a imaginou, e provavelmente ninguém jamais a imaginará. 

Por uma razão qualquer, a compreensão de que nada havia a esperar teve salutar efeito sobre mim. Durante semanas e meses, durante, na realidade, toda minha vida, eu vinha esperando que acontecesse algo, algum fato extrínseco que alterasse minha vida; e agora, de repente, inspirado pela absoluta desesperança de tudo, sentia-me aliviado, sentia como se tivessem arrancado um grande peso de meus ombros. Ao amanhecer, separei-me do jovem hindu, depois de lhe ter tomado alguns francos, o suficiente para um quarto. Caminhando em direção a Montparnasse, decidi deixar-me arrastar pela maré, não opor a menor resistência ao destino, fosse qual fosse a forma sob a qual se apresentasse. Nada do que me acontecera até então fora suficiente para destruir-me; nada fora destruído, exceto minhas ilusões. Eu mesmo estava intacto. 

O mundo estava intacto. Amanhã talvez houvesse uma revolução, uma epidemia, um terremoto; amanhã talvez não restasse uma única alma a quem se pudesse recorrer para obter simpatia, auxílio, fé. Pareceu-me que a grande calamidade já se manifestara, que eu não poderia ficar mais verdadeiramente sozinho do que naquele próprio momento. 

Decidi que não me apegaria a nada, que não esperaria nada, que a partir de então viveria como um animal, como uma fera carnívora, um nômade, um rapinante. Mesmo que declarassem a guerra e fosse meu destino partir, eu agarraria a baioneta e a enterraria, a enterraria até o punho. E se o estupro for a ordem do dia, então estuprarei, e com uma vingança. Nesse próprio momento, no quieto alvorecer de um novo dia, não estava a terra tonta com crime e miséria? 

Algum único elemento da natureza do homem teria sido alterado, vitalmente, fundamentalmente alterado, pela incessante marcha da história? Pelo que ele chama de melhor parte de sua natureza, o homem foi traído, só isso. Nos extremos limites de seu ser espiritual o homem se encontra de novo nu como um selvagem. Quando encontra Deus, por assim dizer, ele está bem arrumado: é um esqueleto. A gente precisa afundar-se de novo na vida a fim de ganhar carne. O verbo precisa fazer-se carne; a alma tem sede. Qualquer migalha em que meus olhos pousem, agarrarei e devorarei. Se viver é a coisa suprema, então viverei, mesmo que precise tornar-me canibal. Até agora eu vinha tentando salvar meu precioso couro, preservar os poucos pedaços de carne que escondem meus ossos. Estou cheio disso. Atingi os limites da resistência. Minhas costas estão contra a parede; não posso recuar mais. No que tange à história, estou morto. Se existe algo além terei de saltar para trás. Encontrei Deus, mas ele é insuficiente. Só espiritualmente é que estou morto. Fisicamente estou vivo. Moralmente estou livre. O mundo que abandonei é uma jaula. A aurora está nascendo sobre um mundo novo, um mundo de selva no qual os espíritos descarnados rondam com garras afiadas. Se sou uma hiena, sou uma hiena descarnada e faminta: avanço para engordar-me.  


Trópico de Câncer exprime a angústia duma consciência torturada pela visão alucinatória de catástrofes imensas. 
(Fluchère)



Exercem um efeito terapêutico maravilhoso sobre mim essas catástrofes cuja revisão faço. Imaginem um estado de perfeita imunidade, uma existência encantada, uma vida de absoluta segurança no meio de bacilos venenosos. Nada me toca, nem terremotos, nem explosões, nem distúrbios, nem fome, nem colisões, nem guerras, nem revoluções.

Estou vacinado contra toda doença, toda calamidade, toda tristeza e miséria. É a culminância de uma vida de fortaleza. Sentado em meu pequeno nicho, todos os venenos que o mundo solta diariamente passam por minhas mãos. Nem sequer a unha de um dedo fica manchada. Estou absolutamente imunizado. Estou melhor do que um assistente de laboratório, porque aqui não há maus cheiros, apenas o do chumbo queimando. O mundo pode estourar - estarei aqui do mesmo jeito para pôr uma vírgula ou um ponto e vírgula. Talvez até mesmo ganhe um pequeno extraordinário, pois com um acontecimento como esse haverá fatalmente uma edição extra final. Quando o mundo estourar e a edição final for para a rotativa, os revisores reunirão quietamente todas as vírgulas, pontos e vírgulas, hífens, asteriscos, colchetes, parênteses, pontos finais, pontos de exclamação etc. e os porão em uma pequena caixa sobre a mesa do redator-chefe. Comme ça tout est réglé... 


Fora as lamentações!

Fora elegias e réquiens!


Primeira edição proibida em UK & USA

"Sei, estou convencido no Senhor Jesus de que nenhuma coisa é impura em si mesma;
somente o é para quem a considera impura...
Feliz é aquele que não se condena a si mesmo no ato a que se decide...
Tudo o que não procede da convicção é pecado."

(Epístola de Paulo aos Romanos, XIV - 14; 22; 23)


6 comentários:

  1. Ao contrário do romance "1934" de Alberto Moravia, que debatemos no clube de leitura em Outubro de 2013, em que o protagonista se questiona se e possível viver no desespero sem desejar a morte, em "Trópico de Câncer" o personagem Henry, "como se estivesse fazendo uma novena anual à Nossa Senhora do Consolo", professa um mundo sem esperança, mas nenhum desespero de nossa parte. O livro no início dá a entender que vai se estender exclusivamente no aspecto erótico da vida sexual dos personagens e de repente muda completamente o teor, torna-se poeticamente arrebatador, mergulhando profundamente nas questões existenciais de um escritor na pior, por opção, na Paris dos anos 20 do século XX. E aí a gente capta todo aquele clima que faz de Paris uma cidade singular, cenário perfeito para a manifestação artística do espírito humano, em toda sua potencialidade. Paris com sua sua glória e suas misérias, onde os extremos convivem de maneira inacreditável. A cidade que estremece com brilhantes e ofegantes orgasmos, cardápio inigualável de variedades de alimento sexual, "em que a falta de um dente, um nariz comido ou um útero caído, qualquer infortúnio que agrave a feiura natural da fêmea parece ser considerado como condimento, um estimulante para o esgotado apetite do macho". A Paris de uma época que não existe mais, porque ainda nos limites apropriados de um mundo humano, antes das barbáries que o mundo viria conhecer. Até certo ponto ingênuo e romântico, por causa disso. Está me lembando também, embora o tenha lido há muitas décadas "A idade da razão", de Sartre. Estou gostando muito de Henry Miller! Quero ler todos os seus livros!

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  2. Olá! Vou tentar ler esse livro para o próximo encontro. www.mardevariedade.com Bjs Andreia

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  3. Evandro, excelente seu comentário, excelente toda a matéria. Estou correndo para terminar a leitura para sexta, se não der, não tem importância, pois sei que terei uma noite "estimulante".
    Obrigada mais uma vez por suas postagens.
    Vera.

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  4. Gostei da leitura do livro. A Paris retratada realmente é interessante. Falei um pouquinho desse livro no meu blog: http://www.mardevariedade.com/2015/06/livro-tropico-de-cancer-de-henry-miller.html. Bjs

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  5. Obrigada por mencionar meu blog aqui e também pela visita, Evandro. Abraços.

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