"Mãe, quero um ovão de chocolate na Páscoa, tá?" Aquele
pedido de seu menino, seis anos de um sorriso que insistia em ignorar a vida
dura que a pequena família levava, causou-lhe um sorriso aflito. Não dava para
explicar ao pequeno sobre desemprego ou subemprego... Não dava para explicar
que a Páscoa, como o Natal ou o dia de aniversário, eram dias difíceis para
quem catava as moedas no fundo da bolsa para poder pegar a condução de ida em
busca de uns trocados na rua.
Lota,
apelido de Carlota, mãe do pequeno, custou a dormir naquela noite. Procurava
uma forma de satisfazer a vontade do filho. Quando conseguiu dormir, povoaram
seu sonho muitos ovos, pequenos, grandes, ovões e os mais lindos coelhos.
Decidiu
então, com o coração apertado, mas buscando uma força interior que a sustentava
em momentos tantos e difíceis, tentar responder a mais uma pergunta do mais
velho de seus cinco filhos.
Jesus,
chega aqui pertinho da mamãe, senta aqui meu querido. Mamãe vai te contar uma estória...
O período de
privações da Quaresma se estendia além dos 40 dias, fora criada com preceitos
sérios sobre religião e quando era criança, além dos semi-jejuns que a levava
quase ao nirvana, em sua casa não se ouvia músicas "profanas" no
período que antecedia a Páscoa.
Antes
que a mãe iniciasse a estória, todos da casa ouviram um alarido que vinha da
rua. Levantaram-se rapidamente e foram até a porta que estava aberta. Algumas
mães, pais e muitas crianças faziam uma brincadeira. Curiosos, a mãe e seus
cinco filhos correram para junto dos demais. A ideia foi lançada: quem
encontrasse um ovo escondido naquela redondeza, ganharia um prêmio. Os adultos
poderiam brincar também.
Dividida entre o desafio que era a possibilidade de um ovo
real para seu Jesus e ainda um prêmio - o que seria? - e o rigor da religião
que sempre a fez temente demais aos homens, além de sua conhecida
subserviência, Lota suspirou. Deixou seu medo de lado e lançou-se à rua,
decidida.
Encontrando os
amigos, vizinhos e a criançada, Lola caminhou livremente, sentindo-se feliz,
alegre mesmo. Lembrou-se por um instante da estória que contaria ao filho e
percebeu até aliviada que alguns garotos levavam cartazes que tinham a ver com
sua história . Ela leu: Páscoa! Festa da Renovação! Em outro cartaz: Estamos
festejando o amor, o perdão, a união! e num outro: Páscoa! Quem achou o ovo?
E então, algo horrível aconteceu: um som de sirene foi ficando cada vez mais
forte até que um carro da polícia apareceu a toda velocidade. Quatro policiais
fortemente armados desceram do carro de armas em punho e ordenaram que todos
ficassem onde estavam, sem se mexerem. Tinham recebido uma denúncia anônima
sobre tráfico de drogas e que os ovos de páscoa estavam recheados de
cocaína.
Diante da força,
a ordem recebida não foi cumprida. Aquelas pessoas, já acostumados a serem
acusadas sem provas, onde suas casas eram invadidas e seus filhos levavam
coronhadas sem motivo aparente - essa turma que fazia festa na rua -,resolveu
não recuar e continuaram...
O
alarido recrudesceu. Tornou-se um verdadeiro tumulto. Eram crianças, jovens,
adultos e, até seu Zé,vizinho pacato, beirando os setenta anos, acompanhou os
netos na brincadeira. Além de tudo, havia, suspenso em um dos postes da rua, enorme
espantalho, simbolizando o Judas, que, de acordo com a tradição, deveria ser
malhado no Sábado de Aleluia.
Padre
Quinzão, responsável pela paróquia, muito ranzinza, passava pelo local nesse
momento, e, abanando a cabeça e resmungando, dizia para si: "Eles só
querem saborear o chocolate do ovo, mas não se preocupam em saber o que ele
representa". Assim pensando, caminhou, com a inseparável bengala, em
direção da Igreja, onde preparou sua pregação para a Missa das 18 horas.
Incluiu o seguinte: "Depois da morte de Jesus Cristo e da Sua
ressurreição, os cristãos consagraram o hábito de, no Domingo de Páscoa,
presentearem-se com ovo, símbolo do nascimento e retorno da vida. No século
XVIII, essa prática foi adotada, oficialmente, pela Igreja".
Será que alguém foi à Missa nesse dia?
Será que alguém foi à Missa nesse dia?
O século XVIII estava muito distante e ninguém sabia
que a euforia das crianças já era efeito da droga. Seu Zé também provou do
chocolate precioso. Lota então resolveu procurar o conselheiro, toda a
comunidade tem um conselheiro que dá palpite em tudo e geralmente não são
procurados por sua sabedoria e sim pela proximidade do chefe.
Ao chegar na casa do conselheiro encontrou o homem já
de saída, com algemas nos punhos diante dos policiais e a séria acusação do
tráfico de drogas nos ovos de páscoa. Agora a brincadeira poderia ser
comemorada com alegria, sem preocupações. Teria sido mesmo ele, um homem tão
sábio, o autor de tal crime? Deixemos isso para os responsáveis do caso.
Voltemos às brincadeiras na rua porque é tempo de alegria e comemoração da
liberdade.
Mas seria possível brincar diante de tanto alarido? Como
rezar a missa com fatos tão intrigantes? Todos, na verdade, ficaram
estarrecidos com a prisão do Conselheiro, logo ele, homem sábio e em quem
confiavam!
Aquela Páscoa tomou um rumo diferente no pensamento
das pessoas: muitos se questionaram sobre seus credos,seus ideais. Agora, sem a
confiança no Conselheiro,o que fazer, o que pensar...E a alegria dissipou-se
trazendo a cortina da noite, da noite de um dia diferente.
D Lota, que na confusão já estava sendo tratada por
Lola, reuniu seus filhos em volta da mesa e procurou acalmá-los. Teve a
brilhante ideia de cada um desenhar um ovo, com as cores que preferissem, e que
contassem uma estória. Cada um debruçou-se sobre seus sonhos e fantasias e
transferiu para o papel todas as suas emoções...assim adormeceram com
esperanças no novo dia que surgiria.
Mais uma vez, dona Lola guardou a verdadeira história, a história real de suas vidas para escutar as estórias de seus filhos.
Seu filho mais velho, Jesus, foi poupado. Até quando? Nada mais importava naquele instante, só os sonhos de seus filhos. Afinal era Páscoa, ela não podia perder a esperança em dias melhores...
Enquanto isso, numa
bela casa, não muito longe, sua proprietária, conhecida como dona
"Generosa", questionava seu neto, rapaz de uns dezessete anos, sobre
a causa de seu nervosismo e inquietação. A princípio, recusou-se a falar, mas,
tanto ela insistiu, que ele aquiesceu. Disse-lhe que nutria raiva e inveja
daquelas crianças, pois, embora pobres, viviam alegres, brincando na rua e eram
levadas à escola pelas mães. A sua morrera quando ele tinha, apenas, nove anos,
vítima das drogas, conforme lhe contaram. Por isso, aquela brincadeira
incomodava-o. Decidiu acabar com ela e, pelo menos uma vez, veria os meninos
tristes. Assim pensando, fez a denúncia anônima e falsa à polícia de que os
ovos objeto do prêmio continham cocaína. Por sua causa, um inocente, estimado e
respeitado por todos, pobres e ricos, o Conselheiro, estava preso como
suspeito. Sentia-se arrependido. Ao ouvi-lo, a avó exigiu que ele fosse à delegacia
confessar seu crime. Mas, antes, disse-lhe, compre, com este dinheiro que te
dou, muitos ovos, grandes, pequenos, enfeitados, recheados e coloque-os nas
portas das casas dessas crianças. Ficarão alegres e felizes. "Ai de ti se
não me obedeceres!", acrescentou ainda. O rapaz comprou os ovos.
Depositou-os nas portas. Foi à delegacia, onde confessou seu crime. O
Conselheiro foi libertado.
Quando Lota viu o Conselheiro pela manhã,
caminhando pela rua, livre novamente, deixou-se dominar por uma alegria que não
sentia há muito tempo. E sem pensar em nada, apenas deu uma pequena corrida e
abraçou-o festivamente. O Conselheiro, que nunca presenciara uma manifestação
assim de Lota, ficou sem saber o que fazer. Quando ela finalmente o soltou e os
dois ficaram frente a frente, seus olhos se encontraram e eles se viram de uma
forma diferente, como nunca se haviam visto antes.
O Conselheiro percebia que algo havia mudado. O
sabor da recente liberdade fazia-o experimentar cada detalhe como uma nova
oportunidade. Sentia-se como um portador de vida nova, em sintonia com o ovo
que se rompe pois seu interior quer se expandir. Quando encontrou com Lota,
estava a caminho da casa de D. Generosa para agradecê-la e para revê-la, pois
guardava há tempos um forte sentimento por ela.
O Conselheiro, após
despedir-se de Lota prometendo voltar para deliciar-se com sua famosa canjica,
dirigiu-se à casa de D.Generosa. Ela fazia jus ao nome. Se não usasse energia
com o neto e não se preocupasse com o outro, certamente, ele estaria, ainda, na
cadeia. O Delegado e os policiais não se preocuparam em averiguar a verdade. Prenderam-no
e pronto. Missão cumprida! Por outro lado, Lota, na cozinha de sua casa,
preparava o café para as crianças, cortava o pão, estendia a toalha na mesa. E
cantava. Através da música, extravasava toda sua alegria. Cantava tanto, e tão
alto, que a garotada acordou. Jesus, o mais velho, muito sensível,
aproximou-se, beijou-a e disse: Que bom mamãe, ouvir a senhora cantar! Um novo
dia começava trazendo alegria e muita esperança. E eles não tinham visto, até
àquele momento, os ovos deixados na porta!
como é agradavel,compartilhar este conto,criação coletiva de um grupo que realmente tem a arte de viver!Ceci
ResponderExcluirTambém acho, Ceci, agradável, lúdico, integrador, tudo de bom. Não temos a pretensão de fazer uma obra-prima, mas de exercitar nossos devaneios criativamente.
ExcluirNossa o conto ficou belíssimo. Quantas peripécias. O Niilismo (quando do aprisionamente do Conselheiro - seria uma metáfora do Cristo?). Retorno à infância (quando até mesmo os adultos entram na brincadeira). Necessidades para além do dinheiro (essa machuca muito mais profundamente a ponto de nutrir invejas corrosivas). Jejuns e semijejuns (genial). Mas sobretudo, a amizade, ao bem estar interior que nem percebe o objeto de desejo tao desejado até bem pouco tempo atrás, além da busca ou reflexão sobre o sentido cristão dessa festa tão esquecido em nossos dias, pois já não é religioso, é econômico. Tudo isso e mais minhas lágrimas.
ResponderExcluirQue bacana que você se emocionou. A leitura e a escrita aguçam nossa sensibilidade e assim vamos evoluindo. Gosto muito desse exercício do conto coletivo, embora simples, é um espelho da própria diversidade do grupo, que coexiste tão bem. O conto vai pra lá, vem pra cá, cada um tem uma estória na cabeça, mas sobressai o respeito pela visão do outro e a multiplicidade de possibilidades. O horizonte é ainda maior do que vemos e do que não vemos.
ResponderExcluirFicou ótimo. Também adoro participar dos contos coletivos, acho super divertido e a cada postagem fico imaginando os rumos da estória que é totalmente fora de controle. Estou precisando de parceria para o conto da Antologia do Clic, monsieur le concierge me disse que preciso enviar meu conto. Estou analisando curriculuns. Respostas para www.toprecisando.com.br. Parabéns para todos.
ResponderExcluirÉ muito bom partilhar com vocês, amigos, a elaboração desses contos. Do Natal e, agora, o de Páscoa. Singelos, simples, despretenciosos, trazem-nos, de volta, a infância perdida. Por certo, hão de agradar muita gente. Ler é bom, muito bom mesmo, mas, brincar, principalmente com as palavras, melhor ainda.Beijos.
ResponderExcluirEu achei divertido demais, amei participar! Fica no coração uma continuação e a vontade de responsabilizar os órgãos responsáveis pela prisão do sábio sem as devidas investigações. Bem que o Conselheiro merecia uma reparação moral, digamos assim, porém não havia mais tempo para isso. A imaginação não tem limites.
ResponderExcluirFicou lindo! Parabéns a esse grupo maravilhoso! Abraços!
Sonia Salim
Rita, sugiro que na próxima construção coletiva tenhamos uma história e cada um seja convidado a escrever um final diferente. Que tal?
ResponderExcluirCris, ótima ideia, já adotada. Aproveitei também o excelente texto de Affonso Romano com que nos brindou Joana e a brincadeira em homenagem ao Dia Internacional da Mulher já está no ar. Clique no link abaixo para participar.
ResponderExcluirhttp://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/2013/03/um-outro-final-brincadeira-coletiva-em.html