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20 de abril de 2019

Conto coletivo de Páscoa: escrito pelos participantes do Clube de Leitura Icaraí


"Mãe, quero um ovão de chocolate na Páscoa, tá?" Aquele pedido de seu menino, seis anos de um sorriso que insistia em ignorar a vida dura que a pequena família levava, causou-lhe um sorriso aflito. Não dava para explicar ao pequeno sobre desemprego ou subemprego... Não dava para explicar que a Páscoa, como o Natal ou o dia de aniversário, eram dias difíceis para quem catava as moedas no fundo da bolsa para poder pegar a condução de ida em busca de uns trocados na rua.
Lota, apelido de Carlota, mãe do pequeno, custou a dormir naquela noite. Procurava uma forma de satisfazer a vontade do filho. Quando conseguiu dormir, povoaram seu sonho muitos ovos, pequenos, grandes, ovões e os mais lindos coelhos.


Decidiu então, com o coração apertado, mas buscando uma força interior que a sustentava em momentos tantos e difíceis, tentar responder a mais uma pergunta do mais velho de seus cinco filhos. 


Jesus, chega aqui pertinho da mamãe, senta aqui meu querido. Mamãe vai te contar uma estória...
O período de privações da Quaresma se estendia além dos 40 dias, fora criada com preceitos sérios sobre religião e quando era criança, além dos semi-jejuns que a levava quase ao nirvana, em sua casa não se ouvia músicas "profanas" no período que antecedia a Páscoa.



Antes que a mãe iniciasse a estória, todos da casa ouviram um alarido que vinha da rua. Levantaram-se rapidamente e foram até a porta que estava aberta. Algumas mães, pais e muitas crianças faziam uma brincadeira. Curiosos, a mãe e seus cinco filhos correram para junto dos demais. A ideia foi lançada: quem encontrasse um ovo escondido naquela redondeza, ganharia um prêmio. Os adultos poderiam brincar também.

Dividida entre o desafio que era a possibilidade de um ovo real para seu Jesus e ainda um prêmio - o que seria? - e o rigor da religião que sempre a fez temente demais aos homens, além de sua conhecida subserviência, Lota suspirou. Deixou seu medo de lado e lançou-se à rua, decidida.

Encontrando os amigos, vizinhos e a criançada, Lola caminhou livremente, sentindo-se feliz, alegre mesmo. Lembrou-se por um instante da estória que contaria ao filho e percebeu até aliviada que alguns garotos levavam cartazes que tinham a ver com sua história . Ela leu: Páscoa! Festa da Renovação! Em outro cartaz: Estamos festejando o amor, o perdão, a união! e num outro: Páscoa! Quem achou o ovo?



E então, algo horrível aconteceu: um som de sirene foi ficando cada vez mais forte até que um carro da polícia apareceu a toda velocidade. Quatro policiais fortemente armados desceram do carro de armas em punho e ordenaram que todos ficassem onde estavam, sem se mexerem. Tinham recebido uma denúncia anônima sobre tráfico de drogas e que os ovos de páscoa estavam recheados de cocaína.


Diante da força, a ordem recebida não foi cumprida. Aquelas pessoas, já acostumados a serem acusadas sem provas, onde suas casas eram invadidas e seus filhos levavam coronhadas sem motivo aparente - essa turma que fazia festa na rua -,resolveu não recuar e continuaram...

O alarido recrudesceu. Tornou-se um verdadeiro tumulto. Eram crianças, jovens, adultos e, até seu Zé,vizinho pacato, beirando os setenta anos, acompanhou os netos na brincadeira. Além de tudo, havia, suspenso em um dos postes da rua, enorme espantalho, simbolizando o Judas, que, de acordo com a tradição, deveria ser malhado no Sábado de Aleluia. 
Padre Quinzão, responsável pela paróquia, muito ranzinza, passava pelo local nesse momento, e, abanando a cabeça e resmungando, dizia para si: "Eles só querem saborear o chocolate do ovo, mas não se preocupam em saber o que ele representa". Assim pensando, caminhou, com a inseparável bengala, em direção da Igreja, onde preparou sua pregação para a Missa das 18 horas. Incluiu o seguinte: "Depois da morte de Jesus Cristo e da Sua ressurreição, os cristãos consagraram o hábito de, no Domingo de Páscoa, presentearem-se com ovo, símbolo do nascimento e retorno da vida. No século XVIII, essa prática foi adotada, oficialmente, pela Igreja".
Será que alguém foi à Missa nesse dia? 
O século XVIII estava muito distante e ninguém sabia que a euforia das crianças já era efeito da droga. Seu Zé também provou do chocolate precioso. Lota então resolveu procurar o conselheiro, toda a comunidade tem um conselheiro que dá palpite em tudo e geralmente não são procurados por sua sabedoria e sim pela proximidade do chefe.
Ao chegar na casa do conselheiro encontrou o homem já de saída, com algemas nos punhos diante dos policiais e a séria acusação do tráfico de drogas nos ovos de páscoa. Agora a brincadeira poderia ser comemorada com alegria, sem preocupações. Teria sido mesmo ele, um homem tão sábio, o autor de tal crime? Deixemos isso para os responsáveis do caso. Voltemos às brincadeiras na rua porque é tempo de alegria e comemoração da liberdade.
Mas seria possível brincar diante de tanto alarido? Como rezar a missa com fatos tão intrigantes? Todos, na verdade, ficaram estarrecidos com a prisão do Conselheiro, logo ele, homem sábio e em quem confiavam!

Aquela Páscoa tomou um rumo diferente no pensamento das pessoas: muitos se questionaram sobre seus credos,seus ideais. Agora, sem a confiança no Conselheiro,o que fazer, o que pensar...E a alegria dissipou-se trazendo a cortina da noite, da noite de um dia diferente. 

D Lota, que na confusão já estava sendo tratada por Lola, reuniu seus filhos em volta da mesa e procurou acalmá-los. Teve a brilhante ideia de cada um desenhar um ovo, com as cores que preferissem, e que contassem uma estória. Cada um debruçou-se sobre seus sonhos e fantasias e transferiu para o papel todas as suas emoções...assim adormeceram com esperanças no novo dia que surgiria.




Mais uma vez, dona Lola guardou a verdadeira história, a história real de suas vidas para escutar as estórias de seus filhos. 

Seu filho mais velho, Jesus, foi poupado. Até quando? Nada mais importava naquele instante, só os sonhos de seus filhos. Afinal era Páscoa, ela não podia perder a esperança em dias melhores...


Enquanto isso, numa bela casa, não muito longe, sua proprietária, conhecida como dona "Generosa", questionava seu neto, rapaz de uns dezessete anos, sobre a causa de seu nervosismo e inquietação. A princípio, recusou-se a falar, mas, tanto ela insistiu, que ele aquiesceu. Disse-lhe que nutria raiva e inveja daquelas crianças, pois, embora pobres, viviam alegres, brincando na rua e eram levadas à escola pelas mães. A sua morrera quando ele tinha, apenas, nove anos, vítima das drogas, conforme lhe contaram. Por isso, aquela brincadeira incomodava-o. Decidiu acabar com ela e, pelo menos uma vez, veria os meninos tristes. Assim pensando, fez a denúncia anônima e falsa à polícia de que os ovos objeto do prêmio continham cocaína. Por sua causa, um inocente, estimado e respeitado por todos, pobres e ricos, o Conselheiro, estava preso como suspeito. Sentia-se arrependido. Ao ouvi-lo, a avó exigiu que ele fosse à delegacia confessar seu crime. Mas, antes, disse-lhe, compre, com este dinheiro que te dou, muitos ovos, grandes, pequenos, enfeitados, recheados e coloque-os nas portas das casas dessas crianças. Ficarão alegres e felizes. "Ai de ti se não me obedeceres!", acrescentou ainda. O rapaz comprou os ovos. Depositou-os nas portas. Foi à delegacia, onde confessou seu crime. O Conselheiro foi libertado. 


Quando Lota viu o Conselheiro pela manhã, caminhando pela rua, livre novamente, deixou-se dominar por uma alegria que não sentia há muito tempo. E sem pensar em nada, apenas deu uma pequena corrida e abraçou-o festivamente. O Conselheiro, que nunca presenciara uma manifestação assim de Lota, ficou sem saber o que fazer. Quando ela finalmente o soltou e os dois ficaram frente a frente, seus olhos se encontraram e eles se viram de uma forma diferente, como nunca se haviam visto antes.

O Conselheiro percebia que algo havia mudado. O sabor da recente liberdade fazia-o experimentar cada detalhe como uma nova oportunidade. Sentia-se como um portador de vida nova, em sintonia com o ovo que se rompe pois seu interior quer se expandir. Quando encontrou com Lota, estava a caminho da casa de D. Generosa para agradecê-la e para revê-la, pois guardava há tempos um forte sentimento por ela.


O Conselheiro, após despedir-se de Lota prometendo voltar para deliciar-se com sua famosa canjica, dirigiu-se à casa de D.Generosa. Ela fazia jus ao nome. Se não usasse energia com o neto e não se preocupasse com o outro, certamente, ele estaria, ainda, na cadeia. O Delegado e os policiais não se preocuparam em averiguar a verdade. Prenderam-no e pronto. Missão cumprida! Por outro lado, Lota, na cozinha de sua casa, preparava o café para as crianças, cortava o pão, estendia a toalha na mesa. E cantava. Através da música, extravasava toda sua alegria. Cantava tanto, e tão alto, que a garotada acordou. Jesus, o mais velho, muito sensível, aproximou-se, beijou-a e disse: Que bom mamãe, ouvir a senhora cantar! Um novo dia começava trazendo alegria e muita esperança. E eles não tinham visto, até àquele momento, os ovos deixados na porta!



9 comentários:

  1. como é agradavel,compartilhar este conto,criação coletiva de um grupo que realmente tem a arte de viver!Ceci

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    1. Também acho, Ceci, agradável, lúdico, integrador, tudo de bom. Não temos a pretensão de fazer uma obra-prima, mas de exercitar nossos devaneios criativamente.

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  2. Nossa o conto ficou belíssimo. Quantas peripécias. O Niilismo (quando do aprisionamente do Conselheiro - seria uma metáfora do Cristo?). Retorno à infância (quando até mesmo os adultos entram na brincadeira). Necessidades para além do dinheiro (essa machuca muito mais profundamente a ponto de nutrir invejas corrosivas). Jejuns e semijejuns (genial). Mas sobretudo, a amizade, ao bem estar interior que nem percebe o objeto de desejo tao desejado até bem pouco tempo atrás, além da busca ou reflexão sobre o sentido cristão dessa festa tão esquecido em nossos dias, pois já não é religioso, é econômico. Tudo isso e mais minhas lágrimas.

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  3. Que bacana que você se emocionou. A leitura e a escrita aguçam nossa sensibilidade e assim vamos evoluindo. Gosto muito desse exercício do conto coletivo, embora simples, é um espelho da própria diversidade do grupo, que coexiste tão bem. O conto vai pra lá, vem pra cá, cada um tem uma estória na cabeça, mas sobressai o respeito pela visão do outro e a multiplicidade de possibilidades. O horizonte é ainda maior do que vemos e do que não vemos.

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  4. Ficou ótimo. Também adoro participar dos contos coletivos, acho super divertido e a cada postagem fico imaginando os rumos da estória que é totalmente fora de controle. Estou precisando de parceria para o conto da Antologia do Clic, monsieur le concierge me disse que preciso enviar meu conto. Estou analisando curriculuns. Respostas para www.toprecisando.com.br. Parabéns para todos.

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  5. É muito bom partilhar com vocês, amigos, a elaboração desses contos. Do Natal e, agora, o de Páscoa. Singelos, simples, despretenciosos, trazem-nos, de volta, a infância perdida. Por certo, hão de agradar muita gente. Ler é bom, muito bom mesmo, mas, brincar, principalmente com as palavras, melhor ainda.Beijos.

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  6. Eu achei divertido demais, amei participar! Fica no coração uma continuação e a vontade de responsabilizar os órgãos responsáveis pela prisão do sábio sem as devidas investigações. Bem que o Conselheiro merecia uma reparação moral, digamos assim, porém não havia mais tempo para isso. A imaginação não tem limites.

    Ficou lindo! Parabéns a esse grupo maravilhoso! Abraços!

    Sonia Salim

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  7. Rita, sugiro que na próxima construção coletiva tenhamos uma história e cada um seja convidado a escrever um final diferente. Que tal?

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  8. Cris, ótima ideia, já adotada. Aproveitei também o excelente texto de Affonso Romano com que nos brindou Joana e a brincadeira em homenagem ao Dia Internacional da Mulher já está no ar. Clique no link abaixo para participar.

    http://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/2013/03/um-outro-final-brincadeira-coletiva-em.html

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