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26 de novembro de 2016

Trecho extraído do livro do Clube de Leitura Icaraí - 15 anos entre livros


Helene Camille, uma das escritoras que contribuiu com o livro do CLIc


Em "Não Contem com o Fim do Livro", Jean-Claude Carrière e Umberto Eco travam um gostoso debate com Jean-Philippe de Tonnac sobre nossas bibliotecas particulares, onde se compara livros a bons vinhos. Não raro, ouvimos donos de grandes bibliotecas particulares (quando não nós mesmos) lamentarem-se pela ausência de tempo hábil para a leitura de todos os seus livros. Para Carrière, Eco e Tonnac devemos consumi-los sem pressa! Segundo os escritores estas bibliotecas, são garantias de um saber. São espécies de adegas, onde o prazer não está em beber tudo, mas saber poder selecionar as melhores safras, sempre que desejável ou deixar aprimorar uma garrafa e ter a surpresa de encontrá-la anos depois, quando finalmente se desejará consumi-la (ou não). Este tipo de visão desobriga o leitor de ler porque é novo, porque acaba de ser publicado.

"Jean-Philippe de Tonnac: Em todo caso, vocês conseguiram tirar definitivamente a culpa de todas as pessoas que possuem em suas prateleiras um monte de livros que não leram e nunca lerão!
Jean-Claude Carrière: Uma biblioteca não é obrigatoriamente formada por livros que lemos ou livros que um dia leremos, é fundamental esclarecer isso. São livros que podemos ler. Ou que poderíamos ler. Ainda que jamais venhamos a lê-los.
Umberto Eco: É a garantia de um saber.
Jean-Philippe de Tonnac: É uma espécie de adega. Não é recomendável beber tudo.
Jean-Claude Carrière: Também formei uma excelente adega e sei que vou deixar garrafas espetaculares para os meus herdeiros. Em primeiro lugar, porque bebo cada vez menos vinho e compro cada vez mais. Mas sei que, se me desse vontade, poderia descer à minha adega e enxugar minhas melhores safras. Compro vinhos en primeur. O que significa que você os compra no ano da colheita e os recebe três anos depois. O interessante é que, caso se trate de um Bordeux de qualidade, por exemplo, os produtores os guardam em tonéis, depois em garrafas, nas melhores condições possíveis. Durante esses três anos, seu vinho se aprimora e você evitou bebê-lo. É um ótimo sistema. Três anos depois, você em geral esqueceu que tinha encomendado aquele vinho. Você recebe um presente de você para você. É delicioso.
Jean-Philippe de Tonnac: Não poderíamos fazer a mesma coisa com livros? Deixá-los de lado, não obrigatoriamente numa adega, mas deixá-los amadurecer.
Jean-Claude Carrière: Em todo caso, isso combateria o chatíssimo "efeito de novidade" que nos obriga a ler porque é novo, porque acaba de ser publicado. Por que não guardar um livro "de que estão falando" e ler três anos mais tarde? É um método que uso muito com filmes.... "

(Não Contem com o Fim do Livro - Jean-Claude Carrière e Umberto Eco)






21 de novembro de 2016

O Sol é para Todos, de Harper Lee

Segue o post que fiz no meu blog Mar de Variedade.

Olá queridos!
Conforme divulgado, houve reunião nesta sexta do Clube de Leitura Icaraí, para debatermos esse emocionante livro.

Sinopse da Editora Saraiva: "Um livro emblemático sobre racismo e injustiça: a história de um advogado que defende um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca nos Estados Unidos dos anos 1930 e enfrenta represálias da comunidade racista. O livro é narrado pela sensível Scout, filha do advogado. Uma história atemporal sobre tolerância, perda da inocência e conceito de justiça. 'O Sol é Para Todos', com seu texto “forte, melodramático, sutil, cômico” (The New Yorker) se tornou um clássico para todas as idades e gerações."




Algumas curiosidades sobre o livro:

- Romance vencedor do Pulitzer e lançado em 1960;

- Deu origem ao filme homônimo, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 1962;

- O romance é baseado livremente nas memórias familiares da autora, assim como em um evento ocorrido próximo à sua cidade natal, em 1936, quando ela estava com 10 anos de idade;

- O único romance publicado de Harper Lee, durante anos. Publicou no ano passado: Vá,  coloque um vigia;

- Já vendeu mais de 30 milhões de cópias nos Estados Unidos e ganhou a recomendação do presidente Barack Obama, que proferiu o seguinte elogio: “Este é o melhor livro contra todas as formas de racismo”;

- Escolhido pelo Library Journal o melhor romance do século XX;

- Eleito pelos leitores de Modern Library um dos 100 melhores romances em língua inglesa;

- O livro terá uma continuação: Vá, coloque um vigia.

O debate do clube foi muito bom. A leitura do livro encantou e emocionou. 
Harper Lee conseguiu construir muito bem os personagens.
O livro é dividido em duas partes: na primeira, ela situa o leitor com relação à família de Atticus, que é o advogado que vai defender Tom Robinson, um negro acusado de estuprar uma branca. A autora apresenta os personagens e a vizinhança dos protagonistas, além de descrever Maycomb, um lugar rural e pacato, no Alabama. 
Na segunda parte, há o julgamento de Tom Robinson e todos os seus desdobramentos.
O livro é narrado por Scout, filha do advogado Atticus. A história se passa dos seus 6 aos 8 anos, aproximadamente.
O interessante no livro é termos o olhar de uma criança sobre várias questões abordadas no livro. Scout é uma menina inteligente e questionadora. Ela, juntamente com seu irmão Jem e seu amigo Dill formam um núcleo importante na história, pois eles conseguem passar as características de vários personagens, sob um olhar puro. 
Há vários momentos marcantes no livro. Muitos desses momentos são os diálogos de Atticus com os seus filhos. Ele, viúvo, era um homem íntegro e gentil, além de respeitar as diferenças e tentar passar esses ensinamentos aos filhos. 
O juiz escolhe Atticus para defender Tom Robinson por saber da sua integridade e dedicação.
Como a história se passa nos anos 30, infelizmente, o negro não tinha vez, era totalmente discriminado. As pessoas naquela cidade preferiam acreditar na palavra de um branco, mesmo que ele não fosse uma pessoa de caráter, a acreditar na palavra de um homem íntegro negro. 
Então, Atticus teve uma bela batalha para defendê-lo. Não vou contar o final dessa história, para não dar spoiler para quem não leu o livro.

"À medida que for crescendo, vai ver brancos enganando negros todos os dias, mas vou lhe dizer uma coisa e quero que nunca esqueça: sempre que um branco faz esse tipo de coisa com um negro, não importa quem ele seja, quanto dinheiro tenha ou quão distinta seja a família da qual ele vem, esse homem branco não vale nada. "  (p.275)

O livro não fala apenas de preconceito racial, mas de desigualdade social, tendo em Atticus uma espécie de herói, que luta contra todo tipo de preconceito. 
Atticus ensina os filhos a respeitarem o ser humano, seja ele de qual jeito for.
É realmente um livro encantador! Recomendo!

Achei o filme bem fiel ao livro. Claro que, em duas horas, não foi possível abordar tantos detalhes contidos no livro, mas, de uma forma geral, passou as mensagens contidas na obra de Harper Lee.

E vocês, queridos leitores? Gostaram do livro? Recomendo muito a leitura!

7 de novembro de 2016

Livro: A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery

Olá queridos!
Como sei que o CLIc já leu esse livro, nesse post mostro o meu olhar sobre a obra.
Segue o post que fiz no meu blog Mar de Variedade
Esse foi o livro de outubro do Clube do Livro virtual, do qual participo. Participo de três clubes de leitura. Hahaha.

Sinopse da Saraiva: "À primeira vista, não se nota grande movimento no número 7 da Rue de Grenelle: o endereço é chique, e os moradores são gente rica e tradicional. Para ingressar no prédio e poder conhecer seus personagens, com suas manias e segredos, será preciso infiltrar um agente ou uma agente ou — por que não? — duas agentes. É justamente o que faz Muriel Barbery em A 'Elegância do Ouriço', seu segundo romance. Para começar, dando voz a Renée, que parece ser a zeladora por excelência: baixota, ranzinza e sempre pronta a bater a porta na cara de alguém. Na verdade, uma observadora refinada, ora terna, ora ácida, e um personagem complexo, que apaga as pegadas para que ninguém adivinhe o que guarda na toca: um amor extremado às letras e às artes, sem as nódoas de classe e de esnobismo que mancham o perfil dos seus muitos patrões."



Achei a leitura bem fluida. Apesar de ser um livro de 350p., li rapidamente.
Gostei do paralelo que é traçado no livro: ora a narrativa é da Renée, 54 anos, a concierge (zeladora) de um prédio de classe alta em Paris (número 7 da Rue de Grenelle), ora a narrativa é da Paloma, adolescente rica de 12 anos.
Embora aparentemente elas sejam muito diferentes, com o decorrer da leitura, vamos perceber que elas são muito parecidas. Ambas muito inteligentes, cultas e críticas com relação ao tratamento que é dado por pessoas ricas às pessoas de classe inferior. Elas também criticam o português ruim das pessoas, principalmente dessas que se acham superiores às outras. 
O livro é bem filosófico. Vários temas nos levam a refletir.
A Paloma, por exemplo, se sente uma estranha no ninho. Seus pais e sua irmã são muito diferentes dela. Ela não suporta o jeito como sua família lida com pessoas de classe inferior e com a vida de uma forma geral. A Paloma percebe essas questões, mas finge ser uma idiota para não chamar a atenção. Ela planeja se suicidar, pois não aguenta a família que tem. 
A Renée, que é viúva,  tem uma melhor amiga, a Manuela, com quem sempre toma chá e consegue ser ela mesma. Diante dos moradores do prédio, ela tenta esconder a pessoa culta que é, pois percebe que os moradores esperam uma pessoa ignorante como zeladora. Isso nos leva a refletir sobre a invisibilidade de alguns funcionários, como os que trabalham em um prédio. 
Trata-se de um condomínio, cujos moradores são ricos. Até aí Ok. Só que são ricos que se acham superiores aos seus subalternos e que não os enxergam além de meros trabalhadores. 
No decorrer da história, aparecerá um personagem muito importante: o Kakuro, um novo morador. Isso para mostrar que também na ficção nem tudo está perdido.
Ele é o tipo de pessoa que, apesar de riquíssimo, assim que chega no prédio já presta atenção em Paloma e Renée. Ele consegue ver além da aparência. Não posso falar mais do que isso, pois daria spoiler. 
Esses três personagens serão muito importantes nas vidas uns dos outros, o que nos faz refletir sobre a diferença que estamos fazendo no mundo. 
Há passagens engraçadas no livro, também, como quando a Paloma vai ao Psicólogo com a mãe e a adolescente faz "a máscara" dele cair. 

"A sra. Michel tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são  uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes." p.152

Tanto Renée quanto Kakuro são apreciadores de bons livros e de arte, o que os aproxima. O livro tem várias referências interessantes. 

Portanto, é um livro muito bonito, bem filosófico e com personagens marcantes.
Recomendo!

6 de novembro de 2016

Livro: A Rainha Ginga, de José Eduardo Agualusa

Vou reproduzir o post do meu blog. Abraço a todos.


Olá queridos!
O livro do mês de maio do Clube de Leitura Icaraí foi esse.
Trata-se de um bom romance histórico.

Sinopse da Livraria da Travessa: "Este romance histórico narra a incrível e verdadeira história de dona Ana de Souza (1583-1663). Senhora de um reino poderoso nos vastos sertões da costa ocidental da África, dizimado e reconstruído vezes seguidas, ela exerceu seu poder com inteligência e originalidade. Astuta nas negociações políticas, a Rainha Ginga estabeleceu alianças diplomáticas com os holandeses, ao mesmo tempo em que comandava os seus exércitos contra outros reis africanos, e tropas luso-brasileiras. Ardilosa, vaidosa, adotou uma coleção de esposas (na realidade homens, vestidos como mulheres) e se casou várias vezes com chefes militares que desejava como aliados políticos. O renomado escritor José Eduardo Agualusa recupera a trajetória desta poderosa rainha, compondo uma história de amor, sexo e poder."


O livro é narrado por um padre brasileiro, nascido em Olinda. Ele acaba se tornando um dos secretários da rainha e, com o tempo, desiste de ser padre.
O padre acaba sendo a figura central do livro. Ele narra com detalhes as guerras por conquista de reinos pela Rainha Ginga. E tudo que ela foi capaz de fazer para ter mais poder. 
O narrador conta em detalhes, também, a forma terrível com que os escravos eram tratados por seus donos, trazendo muita revolta para quem lê. 
O livro possui várias frases muito interessantes e uma que quase todo o grupo do clube mencionou e gostou foi essa: 

"Há mentiras que resgatam e há verdades que escravizam." (p.115)

No contexto, ela faz todo o sentido. Não irei explicar para não dar spoiler.
Então é uma boa leitura: interessante e informativa.


Bom livro!

20 de novembro - dia da Consciência Negra: Cyana Leahy




Caros amigos e amigas, 

espero que esteja tudo bem com todos vocês. Aqui está tudo ótimo.  

Hoje é dia da Consciência Negra, a ser comemorado por todos nós, brasileiras e brasileiros, o ano inteiro. 

É extremamente importante reler a obra de CAROLINA MARIA DE JESUS e sua importância para a sociedade brasileira. QUARTO DE DESPEJO é leitura fundamental para a verdadeira literatura brasileira. É uma das quatro escritoras que analisei no Doutorado em Literatura Brasileira, na Universidade de São Paulo: Ercília Nogueira COBRA,  Julia Lopes de ALMEIDA, minha querida HILDA HILST (que tive o privilégio de entrevistar na Casa do Sol, no dia 04 de setembro de 1992) e CAROLINA MARIA DE JESUS. 

Até meus alunos de pós-graduação nas áreas médicas, na Universidade Federal Fluminense, revelaram a transformação em sua visão da sociedade, dos próprios pacientes, após lerem QUARTO DE DESPEJO. 

Só conhecemos CAROLINA por que o jornalista Audálio DANTAS foi fazer uma reportagem na Favela do Canindé,  em abril de 1958. Soube que aquele mulher negra, carregando sacos de papel na cabeça e nos ombros, estava escrevendo um livro sobre as mazelas da favela. Ficou curioso, quis ler. 
            
         APRESENTAÇÃO

'Quando vi CAROLINA a primeira vez foi em 1958 na Favela do Canindé. Cheguei lá, repórter, para saber o que haviam feito sobre umas balanças que a prefeitura mandou botar na favela. Carolina estava perto da balança dos meninos que os grandes tomaram. E protestava, dizendo: 'deixa estar que vou botar todos vocês no meu livro'. 
Perguntei sobre o livro, ela respondeu: 'o livro que estou escrevendo as coisas da favela'.  

Fui ver o livro. E vi os cadernos no guarda-comida escuro de fumaça. Eu vi, eu senti. Ninguém melhor do que a negra Carolina para escrever histórias tão negras. Nem escritor transfigurador poderia arrancar tanta beleza triste daquela miséria toda. Nem repórter de exatidão poderia retratar tudo aquilo no seco escrever. 

Foi por isso que eu prometi publicar seu livro. 
'QUARTO DE DESPEJO', título do livro, foi sugerido pela imagem que CAROLINA criou para a favela. Imagem perfeita e exata. Selecionei trechos, sem alterar uma palavra. 

CAROLINA, você gritou tão alto que o grito terminou ferindo ouvidos. A porta do QUARTO DE DESPEJO está aberta. Por ela sai um pouco da angústia favelada. É a primeira porta que se abre. Foi preciso abri-la por dentro e você encontrou a chave. Agora, vamos esperar que os cá de fora olhem para dentro e vejam melhor o QUARTO DE DESPEJO. 

Vejam o sol que entra agora no QUARTO DE DESPEJO. Aqueçam-se, irmãos, que a porta está aberta. CAROLINA MARIA DE JESUS achou a chave. Aqueçam-se!' 

            AUDÁLIO DANTAS (apresentação à edição original, 1960)




Assim começa QUARTO DE DESPEJO:
'15 DE JULHO DE 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia compara um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente, somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. 

Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então, lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros. Comprei 20 de carne, 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açúcar e 6 cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se. 

Passei o dia indisposta. Percebi que estava resfriada. À noite, o peito doía-me.  Comecei a tossir.  Resolvi não sair à noite para catar papel. Procurei meu filho João José. Ele estava na Rua Felisberto de Carvalho, perto do mercadinho.  O ônibus atirou um garoto na calçada e a turba afluiu-se. Ele estava no núcleo. Dei-lhe uns tapas e em cinco minutos ele estava em casa. 

Abluí as crianças, aleitei-as e abluí-me e aleitei-me. Esperei até as 11 horas por um certo alguém. Ele não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quando despertei o astro rei deslizava no espaço! A minha filha Vera Eunice dizia: 'vai buscar água, mamãe!'

16 de julho. Levantei-me. Obedeci a Vera Eunice. Fui buscar água. Fiz o café. Avisei as crianças que não tinha pão. Que tomassem café simples e comessem carne com farinha. Eu estava indisposta, resolvi benzer-me'. Abri a boca duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado. A indisposição desapareceu, saí e fui ao seu Manuel levar umas latas para vender. Tudo que encontro no lixo eu cato para vender. Deu 13 cruzeiros. Fiquei pensando que precisava comprar sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava! 
Cheguei em casa, aliás, no meu barraco, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta. A Vera não tem sapatos. Ela não gosta de andar descalça. Faz uns dois anos que pretendo comprar uma máquina de moer carne. E uma máquina de costura. 

17 DE JULHO. Domingo. Um dia maravilhoso. O céu azul sem nuvens. O Sol está tépido. Deixei o leito às 6h30. Fui buscar água. Fiz café. Tenho só um pedaço de pão e 3 cruzeiros. Dei um pedaço de pão a cada um, pus feijão no fogão que ganhei ontem do Centro Espírita da Rua Vergueiro 103. Fui lavar minhas roupas. 
Quando retornei do rio o feijão estava cozido. Os filhos pediram pão. Hoje é a Nair Mathias quem conseguiu implicar com meus filhos. Estou revoltada com o que as crianças presenciam. Ouvem palavras de baixo calão. Oh! se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais decente!

Saí à noite, fui catar papel. Quando passava perto do campo do São Paulo, havia várias pessoas saindo. Todas brancas, só um preto. E o preto começou a insultar-me: 'Vai catar papel, minha tia? Olha o buraco, minha tia!' 

Aqui é assim. A gente não gasta luz, mas tem que pagar. Saí e fui catar papel. 

Estive revendo os aborrecimentos que tive estes dias. Suporto as contingências da vida resoluta. E não consigo armazenar para viver, resolvi armazenar paciência'. 

... O que eu aviso aos pretendentes à política é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la. 

Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que estou sonhando! 

26 de AGOSTO. A pior coisa do mundo é a fome! 

31 de DEZEMBRO. Espero que 1960 seja melhor do que 1959. Sofremos tanto, que dá para a gente dizer: 
'Vai, vai mesmo! Eu não quero você mais. Nunca mais!'

1 de JANEIRO de 1960.
Levantei às 5 horas e fui carregar água'. 
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Algo mais a dizer? 

Ficou famosíssima, publicada no Brasil e no exterior, traduzida para vários idiomas. Mas no dia seguinte aos festejos, foi catar papel no lixo. 

Se não fosse AUDÁLIO DANTAS, como teríamos conhecido CAROLINA? Quantas 'carolinas' haverá ao nosso redor que não sabemos olhar e ver? 

Essa é a verdadeira LITERATURA BRASILEIRA. Viva a consciência negra o ano inteiro! 

Ótimo fim-de-semana para todos vocês. 

Beijos e abraços, 

Cyana Leahy 

Professora (UFF), escritora, tradutora
PhD em Educação Literária (London University) 
Pesquisadora doutoral em Literatura Brasileira (USP)
Mestra em Educação (UFF), Licenciada em Letras (UFF), Graduada em Música (UFRJ) 
Autora de 18 livros: 6 de poesia, 3 de prosa adulta, 3 de prosa juvenil, 6 de pesquisa acadêmica publicados pelas editoras Autêntica, casa da Palavra, CL Edições, EdUFF, Franco, Martins Fontes,  Papirus, 7 Letras  

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