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7 de setembro de 2016

Vida breve: Hélio Penna


Mary Zaidan Noblat

            O corpo da jovem estava de cara para o chão, no barro do subúrbio, desde as primeiras horas da madrugada. Quando os moradores começaram a circular em direção ao trabalho, o cadáver foi avistado por uma mulher, que soltou um grito de pavor, cortando a penumbra: “Meu Deus!” Ela benzeu-se e seguiu adiante.

            O dia clareou, e só então a vizinhança rodeou o corpo, que foi coberto com uma toalha de mesa. A mortalha era curta e deixava os pés à mostra. Ninguém a conhecia. “A gente ouviu uns tiros de madrugada...”. “Isso aqui tá ficando um perigo...”. “Vai ver tava devendo à boca e desovaram aqui”. “A bandidagem não perdoa”.

Crianças passavam a caminho do colégio. Queriam espiar, as mães não deixavam. “Eu não quero vocês na rua à noite! Ouviram? Me obedeçam, pelo amor de Deus!”. Puxavam os pequenos pelas mãos.

            O bar-mercearia iniciou o atendimento. Depois foi a vez da Igreja Redentores de Jesus Engrandecido levantar as portas de aço. A pastora pendurou a placa no poste próximo ao corpo: SEGUNDA FEIRA: DIA DA SALVAÇÃO E REDENÇÃO DOS PECADOS. “Isto é obra do Diabo! A salvação está em Jesus! Vamos glorificar o Senhor!”. Conclamou num grito, para que todos escutassem.

            Passavam agora estudantes do Ensino Médio. As moças se encolhiam, os rapazes iam averiguar e retornavam comentando: “É uma garota”.  “Tiro na cabeça”. “Não é da área”.  E seguiam alheios aos riscos que rondam os jovens negros da periferia.

            A polícia militar chegou ao local. O carro oficial entrou vagarosamente na rua. Um sargento ao volante, acompanhado de um cabo, que carregava o fuzil com a ponta para fora da janela. As pessoas afastaram-se. Os policiais deixaram o veículo. O cabo ficou em guarda, com seu fuzil e olhar ameaçador.  O sargento aproximou-se do corpo e levantou o manto. Depois deu ordens para não permitir a aproximação de mais ninguém.  Voltou à viatura e dirigiu-se à Delegacia de Homicídios, para o registro do caso.  

            Entardecia. A morta já não despertava tanta atenção. O que mais se comentava era a demora da perícia e a remoção do cadáver.

- Se fosse na Zona Sul, o rabecão já teria chegado.

- Já viu algum defunto largado no Leblon?

- Nunca!

            Quase anoitecendo, a perícia chegou. Reuniram-se novamente alguns moradores para verem o trabalho dos peritos e anotarem a placa dos automóveis para o jogo do bicho no dia seguinte.

            Os peritos realizaram o seu trabalho e identificaram a morta. Maria Alice da Silva era o seu nome.

...


            Quando Maria Alice se arrumava para o baile de domingo a mãe teve um mau pressentimento e pediu-lhe que desta vez ela não fosse. Mas a filha insistiu e saiu. Na rua, Maria Alice encontrou seus amigos. O grupo tinha pouco dinheiro; combinaram então que voltariam a pé.

            O baile estava animado, e o grupo divertiu-se até a meia-noite. Deixaram o local e deram início à longa caminhada.

            Retornavam alegres. Brincavam uns com os outros Riam. Falavam alto. Contavam os acontecimentos da noite.

O grupo encurtava caminho por ruas desertas e escuras, até que avistaram uma equipe de soldados da polícia militar. Um medo atávico e terrível percorreu a pele, o sangue, os ossos e os nervos dos rapazes e moças. Passaram pelos policiais no mais profundo silêncio, quando escutaram a voz de comando: “PARA! PARA! MÃO NA CABEÇA!” Mas eles correram.

                                    

Revisão: Professor Luiz Antônio de Barros

7 comentários:

  1. Hélio, gostei muito da sua crônica. Ela faz a gente refletir sobre o quanto as pessoas estão "frias" com o outro. Estão mais preocupadas com seus afazeres domésticos, com seu dia a dia. A crônica também traz uma crítica sobre o julgamento precipitado que fazemos das pessoas.

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  2. Conciso e potente, assim é o DNA desse excelente escritor. Parabéns!

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    1. Obrigado, Evandro. Você sempre me incentivando.

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  3. Perfeito, o cotidiano das comunidades descrito abertamente e diretamente. Excelente trabalho...

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  4. Crônica incrível! Mostra a desumanização do homem contemporâneo. Grande abraço!

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