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8 de agosto de 2016

Quando essa onda passar: Hélio Penna





Enquanto espero o ônibus na Avenida Brasil, observo um vendedor de água. Ele anda rápido de um lado para o outro. Mistura-se aos carros, ônibus, caminhões e motos perigosamente. Com destreza espantosa, desviar-se dos veículos. Grita: Água! Água! Bate nas laterais dos coletivos para que os motoristas esperem, ou então corre ao lado das janelas para concluir a venda. Água! Água! O calor escaldante do bairro e a lentidão do trânsito lhe favorecem. Os passageiros também colaboram: quem está na janela estica o braço, pega a garrafa e entrega aos outros passageiros que estão sentados ou em pé no corredor. 

Num dado momento, o vendedor abre a caixa de isopor e retira um copo – desses que as crianças pequenas usam – e uma garrafa plástica. Enche o copo com a água da garrafa. Tapa o copinho, e atravessa a avenida até o canteiro central. Eu o acompanho com o olhar, e então descubro um menino sentado sob a sombra de uma árvore, a quem ele oferece o copo, tendo antes passado no rosto da criança a toalha que trazia no ombro.

O vendedor retorna, esquivando-se dos automóveis. Eu me aproximo curioso. Peço uma garrafa, e pergunto: É seu filho? Sim. E ele logo explica que foi obrigado a trazer o filho menor porque a creche e a escola estavam fechadas. A mãe levara os outros dois filhos para a casa da patroa... Água! Água!  Ele corre, aproveitando uma nova retenção do tráfego.  Não sei como consegue carregar três garrafas em cada mão. Os braços abertos, como um redentor no asfalto abrasante, na contramão da avenida.

Eu o perco de vista. Penso no risco daquela atividade, que obriga um homem a driblar carros em movimento. Ele reaparece mais à frente. É jovem. Usa bermudas, camiseta e tênis. Traz no pescoço um cordão de contas muito azuis. É franzino e de aparência frágil, contrastando com a sua habilidade e resistência para aquele ofício árduo. Tem um brilho de esperança nos olhos.

O senhor tá esperando qual ônibus? Eu respondo. Passa toda hora, ele me garante. Perdeu um monte... Repara nos meus óculos e franze a cara, espantado certamente com o grau das lentes. Eu enxergo bem, de longe e de perto... Graças a Deus. Afirma. Vou dar o sinal pro senhor. Comigo eles param... Água! Água! Com impressionante rapidez ele pega as garrafas na caixa, e salta na frente de um carro, se livra de outro, e segue em zigue-zague até a uma van. Alguns motoristas xingavam, faziam gestos obscenos, buzinavam insistentes, irritados. O vendedor me dissera que não se ofendia. Além do mais, sabia que podia provocar algum acidente. 

Esquecido dos meus compromissos, quando ele retorna, pergunto o motivo do fechamento das escolas.  A guerra do tráfico.  Responde com uma sombra de tristeza e olhando na direção da criança que se distrai com alguns brinquedos.  Na idade dele, eu podia brincar no meu bairro... Cresci subindo e descendo aquelas ruas sem perigo algum.  Agora tem a guerra dos bandidos e da polícia. Ontem eles invadiram de novo... Morreu bandido, morreu trabalhador... Por isso a creche não abriu. Eu fiquei atordoado. Não sabia o que dizer. As feições do vendedor perderam o entusiasmo. Olhei novamente para o menino. E só me ocorreu perguntar se não havia o risco da criança tentar atravessar a pista. Ele não sai dali não. Já sabe se cuidar. Assegurou-me, e completou: Na creche eles ensinam como fazer na hora do tiroteio. Mas essa onda vai passar... um dia... se Deus quiser... É muita injustiça... Lá vem seu ônibus! Do outro lado. Não vai?! Foi ele quem chamou a atenção do motorista, chegando quase no meio da pista. Eu estava sob o impacto daquela realidade cruel, que expunha o menino e tantas outras crianças. O coletivo parou muito adiante. Eu caminhei devagar, carregando a minha indignação.  Ainda escutei o vendedor me dizer: Vai com Deus!



9 comentários:

  1. Que texto impactante e de muita sensibilidade! Que triste realidade é a desses moradores de comunidade!

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  2. Um flash do cotidiano, escrito com perfeição! Hélio capta cruamente as mazelas urbanas com precisão e olhar crítico.

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  3. Mais um excelente texto, Hélio. Parabéns!Precisamos ter olhos de ver, sempre. O mundo seria tão melhor...

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    1. Obrigado, Rita. Fico feliz em poder publicar aqui.
      Hélio Penna.

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  4. Profundo!Vivo está realidade todos os dias, trabalho há dezoito anos em uma dessas unidades, as vejo como forma de segregação, quão mais fácil seria se o responsável ao deixar seus filhos tivessem a certeza da segurança deles.
    Parabéns pelo olhar diferenciado, q lhe trouxe a inquietação e o fez produzir este excelente texto.
    Tente inscreve-lo para a VIII Jornada Pedagógica da Educação Infantil na SME, q acontecerá em Julho/2017.
    Um abraço.

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    1. O retorno de quem lê os meus contos me estimula a continuar produzindo. Muito obrigado. Tentarei escrever a narrativa na Jornada Pedagógica
      Hélio Penna.

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  5. Um choque de realidade escrito com perfeição. Parabéns ao escritor.

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