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1 de abril de 2021

A eternidade e o desejo: Inês Pedrosa Clube da Sete


Fala, Clara, a cega, em "A eternidade e o desejo"(pág.43):

Gostaria de poder dizer que sinto, de certa maneira, que, agora, vejo melhor. Até é verdade, mas não uma verdade redentora. Olho para dentro, vejo o interior  das coisas que, dantes, me escapava. Por isso, estou farta da universidade, desse antro de egos enfunados que é o nosso pequeno mundo, tão cheio da cegueira da vaidade e da miopia voluntária da inveja.
Pe. Antonio Vieira, em a "A eternidade e o desejo"(pág.69):

As paixóes do coração humano, como as divide e enumera Aristóteles, são onze,  mas todas elas se reduzem  a duas capitais: o amor e o ódio. E estes dois afetos cegos são os dois polos em que se revolve o mundo , por isso tão mal governado. 


Assim foi no Clube da Sete

Minha ligação a esta terra é mais forte do que qualquer amor humano. No Brasil, território de afectos exacerbados, o que primeiro se aprende é o desprendimento, ou o dom de amar esquecidamente.  Amar Portugal é fácil e claustrofóbico: em pouco tempo se conhece o território inteiro, em pouco tempo todos os rostos se assemelham. Não sei se te contei que uma vez encontrei o ministro da Educação num café, um mês depois de ter moderado um debate com ele na Universidade — ele falou-me, e eu não o reconheci. Ainda por cima, o homem perguntou como iam as coisas lá na Universidade, e eu, simpaticamente, disse-lhe que iam mal, porque a política da Educação estava uma miséria, e o ministro era um banana. O senhor abriu um sorriso amarelo, agradeceu-me a minha frontalidade e zarpou — olha, tive de lhe pagar o café. Pelo menos agora estou livre destas vergonhas, as vozes repetem- se menos do que as caras — ou talvez eu esteja agora mais adestrada nos sentidos que me sobram.  A vastidão da terra brasileira exorciza o ciúme e espevita o imediatismo do amor lírico. Raros são os brasileiros que conhecem todo o Brasil, e basta-lhes a parte que conhecem para se sentirem parte do todo. Agrada-me a ideia de ser de uma terra aparentemente infinita, de pertencer a uma pátria que se confunde com a ideia de mundo, agrada-me a impossibilidade de conhecer todos os meus conterrâneos, uma impossibilidade que me permite aprender a sentir cada ser humano como meu semelhante. Não poder olhar ensina-me a ver o interior da beleza, as vísceras deste país famoso pela sua imagem. Ser cega no país que exporta cirurgia plástica é assim como uma espécie de provocação política, uma performance interventiva.  Em Portugal sinto-me uma desgraçadinha verdadeira num país de falsos desgraçadinhos. Sento-me numa festa e toda a gente me vem falar de tragédias piores do que a minha, pensando consolar-me. Estou farta de ser consolada, protegida, maltratada com mimos, Sebastião. Desculpa se sou ingrata — estou farta de estar sempre a pedir desculpa.  Preciso deste cheiro. Do cheiro a mar, bulício, perigo e ousadia que não encontro em Portugal. O cheiro a corpos que se mostram — o cheiro a carne e a sexo, à mistura de raças. O Brasil tem um odor a sobrevivência pura que me apaixona; não há nada que mate esta terra — talvez seja precisamente isso o que a impede de se tornar uma superpotência do mundo e talvez seja também isso o que faz dela, estranhamente, uma referência do mundo. O Ocidente como transcendência das identidades culturais fixas, como possibilidade de superação das fronteiras da identidade, é no Brasil que o encontro. Aqui, a humanidade particular é sempre maior do que o Estado, e se isso representa coisas terríveis, no gráfico da pobreza e da injustiça, sinaliza também, ainda que de forma obscura, a possibilidade de um outro caminho, de uma outra liberdade.    Sinto-me mais viva, aqui, onde quase morri, do que no Portugalinho que esconjura o mar da morte no charco das maleitas, o Portugalinho do cavamos andando, quando mal nunca pior, da inveja pequenina administrativamente organizada. Dirás que exagero, e podes dizer o que quiseres, e ter até muita razão. Sucede é que a razão já não me basta — aliás, não creio que baste a ninguém. Aterra que me dá a vida não posso oferecer menos do que a minha vida. 

Beijos da Clara



"Para quê carregar essa nossa curta existência com despedidas?
Ninguém sabe despedir-se de  nada —
não inventámos a eternidade para evitarmos as despedidas?"


Nem imaginas como odeio as pessoas que me garantem, com música de elevador na voz, que é bom manter o desejo, a raiva, a vontade, que bom, a questão é canalizar positivamente tudo isso. Odeio-os, a esses conselheiros bondosos e às suas teorias do positivo e à auréola de tolerância que lhes envolve a garganta quando me incitam a que desabafe, que desabafar faz bem. Querem que além de cega seja santa, eruditamente santa, socialmente santa, que me porte bem, que aceite o carinho empenado pela piedade que têm para me oferecer.




« Notável filosofia é a dos nossos olhos no chorar e não chorar. Se choramos, o nosso ver foi a causa ; e se não choramos, o nosso ver é o impedimento. Como estes nossos olhos são as portas do ver e do chorar, encontram-se nestas portas as lágrimas com as vistas ; as vistas para entrar, as lágrimas para sair. E porque as lágrimas são mais grossas, e as vistas mais subtis, entram de tropel as vistas, e não podem sair as lágrimas. Vistes já nas barras do mar, encontrar-se a força da maré com as correntes dos rios; e porque o peso do mar é mais poderoso, vistes como as ondas entram, e os rios param ? Pois o mesmo passa nos nossos olhos. Todos os objectos deste mar imenso do mundo, e mais os que mais amamos, são as ondas, que umas sobre outras entram pelos nossos olhos; e ainda que as lágrimas dos mesmos olhos tenham tantas causas para sair, como o sentido do ver, pode mais que o sentido do chorar, vemos quando havíamos de chorar, e não choramos, porque não cessamos de ver. » Sermões de António Vieira






Pele, parte mais clara da alma


Em frente à varanda do nosso hotel está um homem sentado a ler, encostado a um cartaz que diz: «Vamos mudar o mundo». Dizes que não sabias que ainda se escreviam coisas destas. Ainda bem que se escrevem coisas destas, Sebastião. Que seria de nós sem a banalidade da utopia? Afirmas que os que querem mudar o mundo, assim de uma vez só, acabam inevitavelmente por o tornar pior. Digo-te que nem todos. Lembro-te outra vez António Vieira: mudar, aperfeiçoar, ter noção dos limites e das responsabilidades, viver em função do outro porque é no outro que somos melhores. Argumentas que isso é muito cristão. E muito comunista. E um bocadinho pedagógico. Repetes: Clara, Clara. Perguntas se não poderia eu deleitar-me com algo mais moderno. Decides que o Padre António Vieira, com os seus delírios de um Quinto Império, é uma figura de alucinado. Um doido. Digo-te que não há nada mais moderno que a loucura. Acrescento que essa tua fé no absoluto da ciência, essa convicção de que a vida pode ser entendida a partir do microscópio, também pode ser uma loucura. Ou uma fraqueza. Falas das intuições de António Vieira como de charlatanices, Sebastião, e isso é-me insuportável. O seu sonhado Quinto Império pode parecer-nos hoje muito datado, mas a forma como ele o descreve e o ideal que nele representa é muito mais vasto do que isso. A tua perspectiva puramente visual dá-me raiva, Sebastião.



A dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela e as seca. Dor que pode sair pelos olhos, não é grande dor; por isso não chorava Demócrito; e como era pequena demonstração da sua dor não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria. 



Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira Filosofia e da experiência. A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva, produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva faz cegar; a dor, que não é excessiva, rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte a tristeza, se é moderada, faz chorar; se é excessiva, pode fazer rir; no seu contrário temos o exemplo: a alegria excessiva faz chorar e não só destila as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros. 

(Sermões: António Vieira)






"A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade." (Pe. António Vieira)





Que Demócrito não risse eu o provo: Demócrito ria sempre; logo nunca ria. A conseqüência parece difícil, e é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração, e cessando a novidade, ou a admiração, cessa também o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário, e se vê sempre, não pode causar admiração nem novidade, segue-se que nunca ria rindo sempre, pois não havia matéria que lhe motivasse o riso.


O riso de Demócrito e as lágrimas de Heráclito


A Bahia de Todos os Santos é a consciência das infinitas possibilidades combinatórias do mundo. 






Sermões - António Vieira

Francisco Chagas


Amor que pode crescer não é amor perfeito



Ser tão grande o amor, que não se possa pagar, é a maior glória de quem ama. 



'A eternidade e o desejo é um livro excelente que li há uns 7 anos. O Globo publicou, em 02/07/2008, uma entrevista muito boa com Inez Pedrosa, a autora. A quem se interessar:



Deixo aqui, um belo trecho desse livro:

"Se eu tivesse olhos, Emanuel, poderia trair as imagens, poderia esquecê-las, acumulá-las, confundi-las. Não vendo, só te vejo a ti........A cegueira obriga-me a ver o que é meu. E o que vejo, no escuro desta corrida a que me  agrilhoo na ilusão de uma escolha que já não tenho, é o veludo da tua pele, o ferro do teu corpo fundindo-se no meu." '

(Elenir)




O Amor Fino


O amor fino não busca causa nem fruto. Se amo, porque me amam, tem o amor causa; se amo, para que me amem, tem fruto: e amor fino não há-de ter porquê nem para quê. Se amo, porque me amam, é obrigação, faço o que devo: se amo, para que me amem, é negociação, busco o que desejo. Pois como há-de amar o amor para ser fino? Amo, quia amo; amo, ut amem: amo, porque amo, e amo para amar. Quem ama porque o amam é agradecido. quem ama, para que o amem, é interesseiro: quem ama, não porque o amam, nem para que o amem, só esse é fino. 

Padre António Vieira, in "Sermões" 




"A eternidade e o desejo" de Inês Pedrosa
  • Um Antônio lhe falava da eternidade, o outro lhe falava do desejo enquanto Clara vivia o desejo como experiência da eternidade.
  • "Dorme, Clara, deixa-me entrar nos teus sonhos, enxotar esses fantasmas que te desassossegam, varrer esses homens que não são dignos de beijar a fímbria do lençol onde os seus pés espreitam..." em "A eternidade e o desejo". Grande livro!
  • Aspiramos a eternidade da juventude - o lugar mais rápido, inseguro e variável da existência humana.
  • Com António, Clara descobre que o sexo pode ser muito mais que prazer, uma verdadeira antecâmara da eternidade.




"Gosto do arrepio da tua língua na minha nuca,
gosto que me digas quero mais quando creio já te ter dado tudo.
Gosto das palavras obscenas que inventamos juntos,
feitas de restos de barcos e impérios."




O cadáver da Inquisição ainda revolve a terra em que pretendemos tê-lo enterrado. 


Só justifica quem perde. 



4 comentários:

  1. Lindo texto, Evandro. Eis minha resposta

    No início, quase todo amor é fino.
    Espontâneo, nasce com ou sem sementes.
    De ininteligível passa à percepção
    e aí é que se interessa.

    Outros amores vem pelo meio
    e aí brotam da gratidão.

    Uns crescem e confundem-se.
    Perdem-se entre a ‘obrigação’ e o ‘interesse’.
    São duplos.

    Há ainda os que começam pelo fim.
    São porque são.
    Não necessitam de recíproca nem de resposta.
    Bastam-se, sem caberem em si.

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  2. A clareza, a limpidez do Padre António Vieira são impressionantes. É imprescindível lê-lo e estudá-lo. Aprende-se sobre o idioma, sobre as relações interpessoais, a religião. Muitas coisas estão presentes em Vieira. Fica-se até mais esperto com ele.
    Belo texto apresentado pelo concierge. Bela resposta da Rita.
    Carlos Rosa.

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  3. Os desejos, no seu tempo, ardem à flor da pele, mas como foi bem lembrado por Elenir, entramos no Outono e não apenas as folhas, também as flores e os desejos secam nessa estação.
    Margot

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