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1 de outubro de 2015

O Aleph: Jorge Luis Borges





The Past

The debt is paid,
The verdict said,
The Furies laid,
The plague is stayed,
All fortunes made;
Turn the key and bolt the door,
Sweet is death forevermore.
Nor haughty hope, nor swart chagrin,
Nor murdering hate, can enter in.
All is now secure and fast;
Not the gods can shake the Past;
Flies-to the adamantine door
Bolted down forevermore.
None can re-enter there,—
No thief so politic,
No Satan with a royal trick
Steal in by window, chink, or hole,
To bind or unbind, add what lacked,
Insert a leaf, or forge a name,
New-face or finish what is packed,
Alter or mend eternal Fact.

Ainda que me tire a vida, n'Ele confiarei (Jó 13,15)

Na sua história obscura e valorosa são freqüentes os hiatos. Por volta de 1868 sabemos que estava de novo em Pergamino: Casado ou amancebado, pai de um filho, dono de uma fração de campo. Em 1869 foi nomeado sargento da polícia rural. Corrigira o passado; naquele tempo devia se considerar feliz, embora no fundo não o fosse. (Esperava-o, secreta no futuro, uma lúcida noite fundamental: a noite em que por fim viu seu próprio rosto, a noite em que por fim ouviu seu nome. Bem entendida, aquela noite esgota sua história; ou melhor, um instante daquela noite, um ato daquela noite, porque os atos são nosso símbolo.) Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta na realidade de um único momento; o momento em que o homem sabe para sempre quem é. Conta-se que Alexandre da Macedônia viu seu futuro de ferro refletido na fabulosa história de Aquiles; Carlos XII da Suécia, na de Alexandre. A Tadeo Isidoro Cruz, que não sabia ler, esse conhecimento não foi revelado num livro; viu-se a si mesmo num entrevero e num homem. Os fatos aconteceram assim: 

Nos últimos dias do mês de junho de 1870, recebeu a ordem de prender um malfeitor que devia duas mortes à justiça. Trata-se de um desertor das forças que o coronel Benito machado comandava na fronteira sul; numa bebedeira assassinara um preto num prostíbulo; noutra, um habitante do distrito de Rojas; o informe acrescentava que procedia de Laguna Colorada. Naquele lugar, quarenta anos antes, os montoneros tinham se reunido para a desventura que entregou suas carnes aos corvos e aos cães; dali saiu Manuel Mesa, que foi executado na praça da Victória, enquanto os tambores rufavam para que não se ouvisse sua ira; dali saiu o desconhecido que gerou Cruz e morreu numa sanga, com o crânio partido por um sabre das batalhas do Perú e do Brasil. Cruz esquecera o nome do lugar o nome do lugar; com leve mas inexplicável inquietação reconheceu-o... O criminoso, acossado pelos soldados, foi tramando a cavalo um longo labirinto de idas e vindas; contudo foi por eles encurralado na noite de 12 de julho. Refugiara-se num capinzal. A treva era quase indecifrável; Cruz e os seus, cautelosos e a pé, avançaram rumo as moitas em cujo fundo trêmulo espreitava ou dormia o homem secreto; Gritou uma chajá; Tadeo Isidoro Cruz teve a impressão de já ter vivido aquele momento. O criminoso saiu do abrigo para lutar com eles. Cruz o entreviu, terrível; a cabeleira crescida e a barba cinza pareciam comer seu rosto. Um motivo notório me impede de relatar a luta. Basta lembrar que o desertor feriu de morte ou matou vários dos homens de Cruz. Este enquanto combatia na escuridão (enquanto seu corpo combatia na escuridão), começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o estorvavam. Compreendeu que o outro era ele. Amanhecia na planície desmesurada; Cruz jogou no chão o quepe, gritou que não ia consentir o crime de que matassem um valente e se pôs a lutar contra os soldados, junto do desertor Martin Fierro.





Vemos agora por espelho, na obscuridade, tudo o que vemos é falso. Todo homem é dois homens e o verdadeiro é o outro, o que está no céu. Nossos atos projetam um reflexo invertido, de modo que, se velamos, o outro dorme, se fornicamos, o outro é casto, se roubamos, o outro é generoso. Mortos, nós nos uniremos a ele e seremos ele. 






Depois de séculos, todas as coisas recuperarão seu estado anterior, e Platão, perante o mesmo auditório, em Atenas, ensinará de novo a mesma doutrina.




De Civitate Dei (A Cidade de Deus) é obra de Santo Agostinho, onde descreve o mundo, dividido entre o dos homens (o mundo terreno) e o dos céus (o mundo espiritual). Uma das criações mais representativas do gênero humano. A propósito da filosofia ou teologia da História, trata dos mais variados e complexos assuntos que sempre apaixonaram e torturaram o espírito humano: da origem e substancialidade do bem e do mal, do pecado, das culpa e da morte, do direito, da lei e das penas, do tempo e do espaço, da contingência e da necessidade, da Providência, da ação humana e do destino no desenvolvimento da História: do ser, do conhecer e do agir do homem, de Deus, da natureza e do espírito, da temporalidade, do eterno, da perenidade e dos ciclos cósmicos, da profecia e do mistério como argumento apologético, da pessoa, da cidade e da comunidade humana.


Olá, quero te conhecer!
O imortal

Os poetas abusam dos traços circunstanciais existente nos fenômenos, o que contamina tudo de falsidade. Os traços circunstanciais podem ser abundantes nos fatos mas não os caracterizam adequadamente para posteriores acessos pela memória, e eles, então, acabam diluindo-se com o tempo. 


"Quando o fim se aproxima, já não sobram imagens da recordação; só restam palavras."




Ser imortal é ser insignificante; exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível, é se saber imortal. Notei que, apesar das religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e mulçumanos professam a imortalidade, mas a veneram que tributam ao primeiro século prova que somente creem nele, uma vez que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Hindustão; nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e engendra a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto… Doutrinada por um exercício de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que num prazo infinito a todo homem acontecem todas as coisas. Por suas virtudes passadas ou futuras, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar as cifras pares e as cifras impares tendem ao equilíbrio, do mesmo modo também se anulam e se corrigem o engenho e a estupidez, e talvez o rústico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto de Églogas ou por uma sentença de Heráclito. O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei de quem praticasse o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse resultado nos já pretéritos… Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a Odisséia. Ninguém é alguém, um único homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agrippa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma cansativa maneira de dizer que não sou.





As peças deste livro correspondem ao gênero fantástico - as coisas da vida real deslizam para contextos incomuns e ganham significados extraordinários, ao mesmo tempo que fenômenos bizarros se introduzem em cenários prosaicos. Os recorrentes motivos borgeanos do tempo, do infinito, da imortalidade e da perplexidade metafísica jamais se perdem na pura abstração; ao contrário, ganham carnadura concreta nas tramas, nas imagens, na sintaxe, que também são capazes de resgatar uma profunda sondagem do processo histórico argentino.







Deus pode fazer que o que um dia foi não tenha sido. 
(Canto XXI - Paradiso - De omnipotentia - Pier Damiani)

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