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6 de abril de 2015

Relembrando belos Textos - No ouriço, um leitor


William Lial


No texto Nova elegância do ouriço¹, da nossa amiga Eloisa Helena, o ouriço ouriçado pela nova aventura que vai enfrentar, e que, quem leu o texto sabe, se ouriçará depois não mais pelo medo da decepção mas pelo prazer da nova descoberta e pelo gozo de felicidade, esse ouriço que, na sua confusão de adolescente “resgata os anos setenta”, é-nos boa metáfora da nossa paixão pela leitura — para sermos barristas e ficarmos apenas aqui pelo nosso terreno da Literatura, com letra maiúscula.

No enredo, uma senhora arruma-se para ir, provavelmente, ao encontro de um grupo de leitura. Nervosa, atrapalha-se, treme. Parece temer novas amizades e decepções, tendo vivido, aparentemente, há algum tempo, um pouco afastada de encontros (“Tanto tempo sem sair à noite!”). Mas enfrenta o medo e vai. No caminho pensa, analisa-se na sua forma de ser, no seu amor exagerado por tudo o que faz e, à medida que se aproxima do local indicado, aumenta a sua angústia, a sua expectativa. Muitas vezes pensa em desistir, mas segue em frente e se depara com um belo mundo. O que temia não encontrar, mas almejava, está lá.

Uma das inteligências do texto é a escolha de palavras que vão simbolizar os estágios pelos quais passa a protagonista. No começo, várias referências ao nervosismo, ao medo e à confusão instalada em sua mente como nas palavras a seguir: nublada, alvoroços, medo, vacilantes, confuso, emoções afloradas, desespera-se (e daqui em diante os termos já demonstram que se encontra no pico do pavor), dolorosamente preocupada e o coração dá pinotes. E nesse ponto chega ao medo do recalque na obstrução; há guardas protegendo a casa, suposto obstáculo que expõe sua fraqueza porque “a casa é envidraçada” como a sua falta de confiança e pavor de a novidade se quebrar e/ou a esperança naufragar numa decepção.

Tudo acontece como numa montanha russa, subindo e descendo, dos picos aos pontos menos altos — mas nunca tão baixo, nunca mínimo, ao chão.

Durante esse percurso, a paixão está sempre manifesta. Seus sinais vão pintando o texto sorrateiramente, pertencendo a um mesmo campo semântico com os semas: vermelho, dolorosos, paixão, lareira, vinho, desejo, atraente, sedutora, todos como distinções e referências feitas à paixão e suas características. E há também o temor, daí o alvoroço: “já tinha vontade de desistir” e “sempre o medo” são sentenças que dão sinais disso. Mas ela continua em frente, mesmo com “passos vacilantes”, quando o destino se encontra aparentemente vedado nos novos semas: cercada e grades (este repetido quatro vezes), uma causa para um medo duplo: o de ter sido um erro sair de casa e o de ficar impossibilitada de continuar e experimentar o novo. Além disso, “há muita luz” que provoca o medo da exposição.

No entanto, todo o medo era desnecessário, a protagonista enfrenta-o e entra na casa. Lá é envolvida por uma mescla de paixão e tranquilidade por estar finalmente em paz, no seu habitat, e nesse momento as palavras mudam de fortes, nervosas para suaves e felizes. Palavras qualificativas como Sorrisos, afetuosos, paixão (num significado diferente do alvoroço de antes), lareira (sinal de aconchego), roda humana, cheia de vida, abraça, fisgada (como seduzida, convencida) amor, feliz, abençoada e romances dos bons representam que a leitora do nosso texto foi abraçada e alcançou a felicidade que desejava, mas temia tê-la frustrada.

Contudo, há um fato curioso nesse encontro feliz: a presença do livro Crime e castigo de Dostoiévski na bolsa da protagonista. Na obra do russo, o personagem sofre pelo peso na consciência de um crime cometido; a pressão moral lhe invade e, ao mesmo tempo em que foge, deseja ser pego. No texto da Elô, a protagonista se angustia, sofre pelo medo de um “crime” ainda não cometido, pensa em fugir, “desistir”, mas também deseja ser pega, como Raskólnikov, porém, não por um crime, mas também, por um lado, pelo alívio de um peso, e por outro, pela satisfação de um bom encontro. E assim como Raskólnikov, ela é pega, é presa e encontra a paz — ele, porque mesmo preso, seu tormento moral acabou; ela porque está na felicidade de um novo horizonte na roda de novos amigos.

Podemos dizer que do mesmo modo que o romance de Dostoiévski trata de um existencialismo, o texto da Elô também; afinal como viver longe de sua paixão, sem o cerco do prazer e sem a coragem de ir além, de vencer os medos e descobrir algo novo. Para que estamos aqui, senão para viver e nos sentirmos vivos e aproveitarmos cada nova oportunidade de sermos felizes? Alem disso, à semelhança da ressurreição de Lázaro que vive Raskólnikov — lembrada pela personagem Sônia a este no seu desespero —, vive a leitora do texto da Elô; ela parece renascer com o gozo experimentado.

O mais interessante é que, muitas vezes, quem escreveu o texto nem percebe que fez uso dessas artimanhas, desses recursos estilísticos para a construção do sentido e do prazer estético do texto, em sua cenestesia e sinestesia. Talvez porque, como queriam os estruturalistas, não seja o autor que domine o texto, por estar “morto”, e o texto se escreva por si mesmo, digamos; ou talvez seja pela metafísica da “unidade universal” desenvolvida pelos alemães “filósofos da natureza”, onde tudo é parte de um todo, então escrevemos em comunhão com o universo; ou ainda porque somos invadidos por nossa bagagem cultural quando escrevemos e, mesmo inconscientemente, pegamos emprestadas teorias e alegorias de matérias que estão alojadas em nosso conhecimento, em alguma parte parcialmente esquecida de nosso cérebro, de onde vem também a inspiração. Ou ainda por tudo isso.

Enfim, todo o texto ocorre como uma metáfora do leitor apaixonado — acredito que possamos ver assim —, onde o leitor, apreensivo, pega o livro, objeto do seu desejo (“O que irei encontrar?”), ansioso por momentos de felicidade, e no momento da leitura (que simbolizamos como o caminho percorrido por nossa protagonista), sofre várias emoções, medo, obstáculos, “Grades, grades...”, algumas vezes o excesso de informação, muitas idéias, mas, no fim, o prazer de “uma lareira e vinho”, “calor” e “luz” — sim, “luz”, porque quando tudo dá certo, os objetos e os medos transformam-se, e a luz que pode ferir e assustar pela exposição de quem teme se expor, transforma-se em aliada daquele que agora se encontra na ribalta sem medo da platéia ou do foco sobre si. Ele agora faz parte do foco. E está feliz.



¹ Texto parte do livro dos 15 anos do CLIc. Para lê-lo basta clicar no título do livro no início deste texto.

4 comentários:

  1. Bela análise! Achei interessante a ressonância entre os textos da Elô e do William, as passagens da crônica embelezando a crítica literária e as comparações desta valorizando 'a nova elegância do ouriço'. A feliz combinação de ambos demonstra a elegância do leitor do nosso clube de leitura. Viva o ouriço por trás de cada leitor! Viva a elegância no CLIc!

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    1. Obrigado, Evandro.

      Sempre atento aos detalhes, o que é imprescindível a um bom entendimento. O texto da Elô é uma boa metáfora das nossas paixões literárias.

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  2. "Contudo, há um fato curioso nesse encontro feliz: a presença do livro Crime e castigo de Dostoiévski na bolsa da protagonista. Na obra do russo, o personagem sofre pelo peso na consciência de um crime cometido; a pressão moral lhe invade e, ao mesmo tempo em que foge, deseja ser pego. No texto da Elô, a protagonista se angustia, sofre pelo medo de um “crime” ainda não cometido, pensa em fugir, “desistir”, mas também deseja ser pega, como Raskólnikov, porém, não por um crime, mas também, por um lado, pelo alívio de um peso, e por outro, pela satisfação de um bom encontro. E assim como Raskólnikov, ela é pega, é presa e encontra a paz — ele, porque mesmo preso, seu tormento moral acabou; ela porque está na felicidade de um novo horizonte na roda de novos amigos."

    Perfeito...Ela foi fisgada! Tenho orgulho de ter um amigo tão sábio assim!

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    1. Elô, Elô.

      O texto é seu, eu só vi coisas nele, rs! Obrigado pelo carinho de sempre ao ler minhas leituras.

      Bom é ter uma amiga assim, tão Elô!

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