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20 de abril de 2015

CLUBE DO CONTO: Tinha que ser


Novaes/







Caminhava pelo tempo como uma diva consciente de sua finitude, percorria madrugadas chuvosas, lutos molhados, riscos esquecidos, paralelepípedos escorregadios, caminhos manufatureiros para chegar ao trabalho, antes da grande sirene. Cartão batido, cão latindo na rua, bramidos mecânicos ali dentro, urgência de ser.

Não gostava de chamar-se operária, era costureira, embora nem uma roupa soubesse fazer. Era especialista numa daquelas funções, umas cortavam panos, outras costuravam, outras prendiam botões, outras mais faziam mangas, algumas, bainhas. A roupa nascia de ninguém, não tinha pai, nem mãe. Eram filhas de todo mundo, frutos do grande bacanal produtivo, cada roupa passava de mão em mão, em cada peça a marca de cada um.

Assim era porque tinha que ser.

Suas horas de reflexão davam-se na condução que, apesar de lotada, prestava-se à sua necessidade de solidão. Tanto faz se o corpo estava em pé ou sentado, a mente voava, sobrevoava sua vida com visão analítica, procurando enxergar o que os olhos da cara, medíocres, jamais conseguem.

Tinha que ser esse o tempo de pensar.
Em casa, já noite, a filha criança, o marido, a mãe viúva recente, que pelo menos tomava conta da filha e ajudava a preparar a comida. Tinha que ser essa a estrutura familiar. O melhor príncipe encantado que fora possível, com os critérios práticos que estavam à mão, bons critérios resgatados com certa desilusão entre os vários sonhos afogados pelas ondas da vida. A mãe útil, mão-dupla solidária, a confirmar a unidade familiar para além, muito além, das costumeiras estatísticas do censo populacional.

Na hora da novela, tinha que ser agora, enquanto a família acompanhava a trama televisiva, nossa diva tinha paz, algum tempo, papel e caneta.

Escrevia num caderno surrado sua novela, onde o príncipe encantado não tinha muito estudo, não vivia em belo apartamento, mas pisava o chão com orgulho, amava os paralelepípedos escorregadios, por onde passava nas noites frias para proteger as moças que madrugavam por obrigação. Tinha que ser assim.

novaes/,
vencedor do Prêmio UFF de Literatura 2011 - categoria Conto,
é autor de "letras rebeldes, fluidos insensatos",
debatido no Clube de Leitura Icaraí em 05/07/2013.

13 comentários:

  1. Gostoso de ler! E a vida tem que ser mesmo assim, como der pra ser, acho. Um miniconto com a marca do novaes/, aquele ritmo característico que descobrimos em seu primeiro livro "letras rebeldes, fluidos insensatos". Era esse o miniconto que estava em sigilo de concurso, novaes/?

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  2. Adoro esse seu modo vertiginoso de narrar Novaes. A riqueza que você extrai de personagens que a sociedade considera insignificante me impressiona. Você os traz à vida numa vitrine digna de toda a pompa. Parabéns pelo prêmio e pela sua obra em si!

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    1. Oi Helene, obrigado. O caso é que não acho esses personagens (essas pessoas reais, trabalhadoras) nada insignificantes. Pelo contrário. Há muito mais importância, relevância, vida e sentimentos em apenas um deles do que em todas as "celebridades" juntas. Assim acho. Grande abraço!

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  3. Acho que não, Evandro. Este é conto virgem de concursos e outras aparições (aqui, a primeira). Obrigado pelas palavras gentis. Abs.

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  4. Mais um belo conto, meu caro \. Um ritmo delicioso de ler, tanto assim que o reli em voz alta, procurando as pausas corretas, a modulação eficaz para não ofender o ritmo tão bom do conto. Já experimentou lê-lo em voz alta? É um conto bom para ser lido e ouvido, como uma canção. O espírito da história é emocionante. Sente-se a dura luta daquela banal e interessantíssima personagem. Alguns textos lembram-me pinturas. Esse seu conto me lembra uma tela do Van Gogh: "Os comedores de batata".
    Parabéns. Um forte abraço.
    Carlos Rosa.

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  5. Um conto econômico nas letras. Curto mas intenso. Leitura boa mesmo, como dizem os amigos acima. Como bem disse Carlos, mais que um conto escrito, um conto pintado. E mais uma vez, cenário e personagens invocam o mundo da margem, da grande margem. Ontem, ao ler o magnífico texto de Antonio Cândido, que serve de prefácio a edição da Cosac Naify de Malagueta, Perus e Bacanaço, do João Antonio, não pude deixar de me lembrar de você, Newton, com essa bela passagem:

    "Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de "dar voz", de mostrar em pé de igualde os indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimir o teor da sua humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada. Isso é possível quando o escritor [...] sabe esposar a intimidade, a essência daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele faz que existam, acima de sua triste realidade." p. 11

    Isso vale para você, meu caro, Você tem essa capacidade e sensibilidade de reproduzir o duro, porém magnífico, universo da margem, traduzindo com sua escrita cenários e personagens, venturas e desventuras da vida na margem do mundo. E isso me agrada.

    Um abraço,

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  6. Parabéns, Novaes, por brindar-nos com mais um belo conto! Gosto do seu texto. Conciso, simples e profundo. Gostei da comparação feita pelo Carlos com a tela de Van Gogh. Realmente, uma pintura com palavras.
    Abraços.
    Elenir

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  7. Amigos, muito obrigado pela leitura e comentários pra lá de gentis.
    Prezado Carlos, pintura foi seu comentário, que enriqueceu o conto com uma leitura sonora e pictórica, auditiva e visual. Gostei da lembrança do Van Gogh, meu preferido, que via luz nas paisagens aparentemente comuns, nas pessoas e ambientes simples.
    Salve Antonio, maravilhosa sua colocação sobre "a margem, a grande margem". Interessante quando percebemos que a "grande margem" é tão grande e tão essencial que deveria ser o "centro", não é mesmo?
    Elenir, nossa poetisa, suas palavras gentis são um bálsamo!
    Obrigado a todos mais uma vez.

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  8. É o primeiro trabalho seu que leio. Gostei da forma como nos mostra em curtas linhas a vida corrida e insatisfeita da personagem. Fica no ar uma expectativa, de que haverá mais à frente."O conteúdo do silencio."

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  9. Eu me identifico profundamente com a tua escrita.
    Parabéns!
    Hélio Penna

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  10. "Suas horas de reflexão davam-se na condução que, apesar de lotada, prestava-se à sua necessidade de solidão. Tanto faz se o corpo estava em pé ou sentado, a mente voava, sobrevoava sua vida com visão analítica, procurando enxergar o que os olhos da cara, medíocres, jamais conseguem."


    Identifiquei-me muito com esse trecho do seu conto! Muito bom seu conto!

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  11. Uma família simples e a vida humilde com a importância conferida pelo autor. É interessante o fato de saber que todos precisam de um momento de silêncio para buscar no pensamento algo novo que dê sentido à vida.

    Belo conto, Novaes! Parabéns!

    Abraços! Sonia Salim

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  12. Mais uma vez sua "marca" está presente...A preocupação com a gente do povo, seus valores e sentimentos.
    É sempre bom refletir com você.
    Obrigada!
    Fraterno abraço,
    Vera.

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