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18 de janeiro de 2015

Hilda Hilst, por Cyana Leahy

Caros amigos, 

Cyana
Ler a reportagem de ontem no Prosa & Verso, sobre HILDA HILST,  pesquisando e revelando aos leitores novos olhares sobre a literatura brasileira, foi emocionante. O Brasil inteiro precisa conhecer HILDA HILST, não apenas como curiosidade literária, mas pela grande escritora e pesquisadora que foi: sua importância para a literatura brasileira é inenarrável. Tenho sua obra completa, a maioria autografada. 

Precisamos exatamente desconstruir os mitos e medos que dominam o meio acadêmico: enquanto mantivermos as imposições, não teremos acesso à leitura e análise da verdadeira literatura brasileira, como estudantes, como professores. 

No doutorado em Literatura brasileira analisei vida e obra de quatro grandes escritoras brasileiras que já conhecia e admirava: Ercília Nogueira COBRA, Júlia Lopes de ALMEIDA, Carolina Maria de JESUS e HILDA HILST, que entrevistei pessoalmente. Todas ficaram famosas no início do século passado, pela coragem de serem feministas de vanguarda. 



Ercília
Ercília publicou 'Virgindade Inútil' (1923)  e 'Virgindade Anti-higiênica' (1925): foi presa por atentado ao pudor, apesar de ser sucesso junto ao público. Julia fazia pesquisa 'in loco' para escrever seus livros sobre piscicultura: entrevistava pescadores na Praia do Flamengo, ainda no começo do século XX. Carolina é internacionalmente conhecida como 'curiosidade', mas escrevia também poesia. Seu vocabulário é extremamente elaborado e sofisticado, muitas vezes merecendo nossa consulta ao dicionário. E Hilda conseguiu juntar a competência literária com uma nova visão do mundo, da política, da sociedade brasileira. 

Júlia
Entrevistei Hilda pessoalmente. Agendei uma entrevista, combinei dia e hora para entrevistá-la; fui avisada antecipadamente que eu teria que ser pontual, ou não me receberia. Fiquei ainda mais curiosa. 

No dia marcado, fui de carro para São Paulo, para as aulas no doutorado. Dirigi para Campinas, de lá percorrendo o caminho certo para sua chácara. Meu objetivo era fazer algumas perguntas, aprofundando minha análise de sua obra.

Carolina
Consegui chegar na hora marcada. Abri a porta do carro e fui cercada por dezenas de cães, latindo e pulando em cima de mim. Como já tinha cachorros em casa, foi natural que os cães de Hilda me fizessem festa. Olhei para a casa, vi uma mulher maravilhosa sentada na varanda, muito séria, fumando um cigarro, olhando para mim de jeito pouco simpático, exatamente como a foto do jornal. 

Subi os degraus, me apresentei, e fui recebida com as seguintes palavras: 'Você ganhou dois pontos: foi aprovada pelos cachorros e foi pontual: se chegasse atrasada, mandaria você e suas perguntas para a puta que pariu.'

A conversa rendeu muito, ficamos amigas imediatamente. Já anoitecia quando tentei me despedir. Ela respondeu: 'liga para casa e avisa que você vai dormir aqui. Já pensou, morre dirigindo e amanhã sai a notícia no jornal: pesquisadora morre na estrada, por causa de Hilda Hilst! Sua cama já está feita desde a hora em que chegou'. 

Passamos a noite inteira rindo, conversando, trocando idéias sobre a literatura brasileira, a sociedade, a política, a cultura, ela sempre acrescentando algo interessante e relevante para nossa conversa, de forma clara e coerente. Além de aprender muito com ela, seu destemor das imposições políticas, sociais, econômicas, ganhei uma amizade muito importante na minha vida. 

Hilda
No dia seguinte, vim embora para casa já saudosa de minha amiga. Eu a revi algumas vezes, ela sempre séria e bem humorada, fazendo piadas com tudo, de forma extremamente consciente dos limites e imposições acadêmicas. Falamos muitas vezes por telefone. 

Anos depois, voltando de congresso no exterior, abri o jornal e li a notícia no obituário: 'morreu Hilda Hilst'. Chorei o resto do voo, arrependida de não ter ido mais vezes visitar e pernoitar em sua casa, com seus cachorros, seus cigarros, seu sorriso incomparável, aprendendo com ela a importância da sociedade na literatura brasileira. 

Até hoje me emociono quando releio a história de nossa amizade.  
Sua obra deveria ser lida por todos os brasileiros, não apenas como 'curiosidade canônica',  mas como obra de arte. 

Enquanto mantivermos um cânone falocêntrico, verticalmente imposto, em nosso ensino e aprendizado da literatura, pouco acrescentaremos à importância da literatura em nossa sociedade. Parte dessa pesquisa foi publicada no livro 'A Palavra Impressa' (Ed. Casa da Palavra). 

Esse trabalho foi interrompido em fase de conclusão, quando participei de congresso na Inglaterra, e ganhei o prêmio Overseas Research Award da Universidade de Londres, para cursar novo doutorado e criar uma área de pesquisa acadêmica. Foram 3 anos de muito aprendizado, principalmente, a valorizar a importância de nosso país, de nossa cultura, de nossa sociedade. Comparei o ensino e aprendizado de literatura no Brasil e na Inglaterra, observando aulas, entrevistando alunos, professores e bibliotecários. Percebi que ambos os paradigmas (o positivista brasileiro e o liberal-humanista inglês) são insuficientes para educar através da literatura como representação da sociedade. 

A 'Educação Literária como Metáfora Social'  foi registrada no MEC e publicada pela Editora da UFF, e 2ª edição, pela Martins Fontes. Tem sido incorporada a várias universidades brasileiras, que sempre me convidam para palestras.  

Vou retomar essa pesquisa em 2015: ainda tenho muito a aprender com minhas 'mulheres invisíveis'. E abrir o Prosa & Verso ontem e ler três páginas sobre Hilda HILST foi simplesmente emocionante. 

Precisava dizer isso imediatamente. Se precisarem  de alguma coisa sobre Hilda, estarei à disposição. 

E se quiserem ler meus livros, será um prazer ter vocês como leitores! 
Desculpem a mensagem tão longa: meu entusiasmo é imenso! 

Abraço carinhoso,
Cyana Leahy


Cyana M. Leahy-Dios
Professora da Universidade Federal Fluminense, escritora, tradutora
PhD em Educação Literária (London University)
Autora de 18 livros de poesia, prosa literária, pesquisa acadêmica publicados pelas editoras Autêntica, Casa da Palavra, CL Edições, Franco, Martins Fontes, Papirus, 7 Letras. 
Foram premiados 'Contos Tradicionais Irlandeses' (Ireland Literary Award), 'Todos os Sentidos: contos eróticos de mulheres' (co-autoria, 'melhor livro de contos de 2004, pela União Brasileira de Escritores). O mais recente é 'Perplexidades & Similitudes', livro de contos prefaciado por Moacyr Scliar. 
Tradutora de prosa literária e pesquisa acadêmica (editoras Bertrand, Casa da Palavra, Fraiha)
Coordena a CL Edições (www.cledicoes.com
R. Osvaldo Cruz, 55/ 1302 - Icaraí, Niterói 
Tel. 2610 9516  Cel. 99354 2494
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