Além dos textos classificados no Prêmio UFF de Literatura deste ano, cuja publicação não pode ocorrer antes da data da premiação, descolados cliceanos liberaram seus textos não classificados, os Off-UFF, no caso melhor seria um Out-UFF. O intuito é mesmo rir de si, mostrar que para sair algo bom é preciso ousar, tentar. Com vocês a crônica de Carlos Benites.
Aquela moça
Tenho recebido cartas
me perguntando sobre meu começo aqui no jornal. Comecei a escrever crônicas
quase como uma única saída. Ou escrevia ou corria risco de ser despejado e
moraria debaixo do viaduto. Não, não estou fazendo pouco caso desse espaço e
nem dos meus fiéis leitores desse jornal de bairro, tanto que hoje só escrevo
por prazer e não por necessidade. Renato, o dono do jornal Lig, era meu amigo e
soube do famoso caso em que me envolvi e, imaginando as conseqüências que
viriam, tratou de pedir a todos os amigos comuns pelo número de meu celular. Ele
só me encontrou três meses depois daquele 10 de outubro de 2009. Renato sabia
que eu rabiscava uns versos e que até já tinha tentado a sorte escrevendo em
parceria a letra de um samba enredo para a
Viradouro, que para a sorte de nossa escola de samba, não foi o
escolhido. Mas crônicas nunca. Porém, como ele insistiu e não tinha outra
oferta, aceitei o desafio. Li crônicas do Veríssimo, depois vi num dicionário
de termos literários que “o cronista é essencialmente um observador, um
espectador que narra literariamente a visão da sociedade em que vive, através
dos fatos do dia-a-dia”. Percebi que se
me preocupasse em atender às definições teóricas ou se procurasse imitar alguém,
me estreparia e dois meses depois estaria na rua. Então decidi que deveria
seguir meu instinto e aqui estou.
Meus leitores devem
estar curiosos sobre o que houve em 2009. Mas eu tenho certeza absoluta que
alguns de vocês devem conhecer o fato, e vão lembrar quando eu terminar de
narrá-lo. Em 2009 eu desempenhava o importante cargo de diretor de imagens da
Sportv, ofício que, tal qual ocorreu com as crônicas, aprendi na marra. Era eu
quem decidia, diante de todas as imagens das diversas câmeras num estádio, qual
que iria para a sua televisão. Na época,
eu era um ser solitário, mas que tinha um único e grande amigo, ali mesmo na emissora. Ambrosio era um cinegrafista boa praça, que era
escalado comigo em todos os jogos. Ele ficava naquelas gruas, suspenso no ar,
pegando lances dos jogos e imagens da arquibancada. Sua especialidade era captar
imagens de beldades. Estádio vazio ou cheio, ele sempre conseguia achar uma
linda mulher, mesmo se tivesse só uma, e mandava para nossa central num
caminhão fora do estádio. Tínhamos um canal secreto no nosso rádio para que não
fôssemos escutados pelo restante da equipe e enquanto mandava as imagens das
beldades, fazia seus comentários, sempre com tiradas espirituosas. A que eu
mais gostava era “abriram as portas do céu e fez cair um anjo aqui no estádio,
Carlitos”. Naquele dia estávamos em Curitiba, no Estádio Couto Pereira, num dia
chuvoso e com o estádio recebendo um público
pequeno, pois o Coritiba estava tentando escapar do rebaixamento contra o
modesto Grêmio Barueri.
Eu pensava que
seria um dia como outro qualquer, mas parecia mesmo que estava escrito que não seria
como os outros. Para começar, fatos inexplicáveis fizeram com que a equipe
naquele dia estivesse reduzida à metade. Faltou gente justamente no caminhão. Entre as causas teve até um caso de adultério,
que foi descoberto pelo marido da amante de um dos funcionários. Mas eu e o
Ambrósio estávamos lá, firmes e fortes, como em todos os jogos. De repente, no
nosso canal exclusivo ouço o meu amigo falar: “olha esse pitel de cabelo
colorido. Parece a Lola daquele filme alemão que vive correndo pela rua.
Conhece, Carlitos? Corra, Lola, Corra! Me apaixonei. É a nora que minha mãe sempre
sonhou”. Sorri, mas dessa vez não fixei na musa escolhida pelo meu amigo. Meu
olhar mirou a cadeira ao lado. Desconsertado, por pouco não deixo passar um
lance de perigo para o Coritiba, que tentava abrir o placar. Voltei para a
imagem do Ambrosio e ele ainda mostrava a sua Lola em close, reagindo com um
grito depois do gol perdido pelo Coxa.
Mas antes dele voltar com a imagem ao campo, ele tirou o zoom e pegou
por dois segundos a responsável pela minha ligeira desatenção ao jogo. Era uma
morena clara, um misto de Sandra Bulock com Scarlet Johanson morena e Diane
Lane, tão bela que justificaria qualquer distração. Durante o jogo Ambrosio nos
brindou com várias imagens da dupla e as mandei para a rede duas ou três vezes,
sendo uma em câmera lenta – ah, bendito inventor da câmera lenta! - A Lola
mexia em seus cabelos, fazendo caracóis, arregalava os olhos, socava o ar,
esbravejava com o atacante do Coritiba. A minha musa mordia os lábios, nervosa,
se assustava, pulava, voltava a sentar-se, pegava sua câmera, fotografava
alguém, depois parecia filmar lances do jogo. Certa hora virou-a para a câmera
do Ambrosio. Estavam ambos filmando e sendo filmados, mas a impressão era que eu
estava sendo filmado. O segundo tempo já estava na metade final e a torcida
aborrecida com o time perdendo por um a zero.
O jogo nervoso me fez sentir saudade
das imagens de minha tágide. Então Beto, o rapaz que ficou mais sobrecarregado
por conta das ausências em nossa equipe, me pediu para sair para fumar um
cigarro. Eu iria negar, pois quem teria que assumir suas funções seria eu, mas
vi que ele merecia o descanso e o autorizei, pedindo que não demorasse. “Só
umas tragadas, hein”. Lembrei-me dos anos em que era eu quem sentava na cadeira
do Beto e me senti tão à vontade que relaxei demais e chamei o Ambrosio no
nosso canal. “Manda as imagens das nossas musas novamente. Estou sentindo
falta”. Então Ambrosio me presenteou com a minha Scarlet Bullock em close.
Estava atenta ao jogo, com um ar sereno. Percebi que ela tinha uma mecha
descolorida, e começou a brincar com ela. Fiquei hipnotizado com sua beleza na
tela inteira, tanto que esqueci do jogo, e fiquei ali olhando seus movimentos.
Batia palmas e seus lábios pintados de vermelho claro cantavam e incentivavam o
time. Olha para o lado, comenta algo com a Lola, estica o pescoço e fala com um
senhor (seria seu pai?). Ela canta, se acalma, se decepciona e senta. Novamente
se levanta, de repente, arregala os olhos. Algo acontecia, um sorriso se forma. Ouço um grito ao longe vindo da pequena
multidão do estádio e minha musa começa a pular de alegria, abraça-se a todos
em volta. Só aí percebi que não estava mostrando o jogo, e puxei a imagem de
uma das câmeras mostrando o gol do Coxa Branca para passar o replay, quando
Beto voltou. Vi que fizera uma grande besteira, mas não sabia que a besteira
tinha sido maior ainda. Ouço conversas de canto do restante da equipe que a
chefia fora notificada . Mas não liguei. A imagem da musa da mecha descolorida
não saía de minha cabeça. Fui ao banco de vídeos e gravei a imagem congelada da
moça, depois passei para um pendrive e fui rapidamente em meu notebook. Entrei
no facebook, usando um perfil fake que tinha e postei num grupo de torcedores do
Coxa a foto daquela linda mulher, pedindo que ela entrasse em contato, deixando
um email que só Ambrosio conhecia - oreportermaislegaldomundo@gmail.com
- e também um número de telefone que igualmente só o Ambrosio tinha. Estavam
todos ainda no estádio, quando meu celular apita avisando a chegada de uma
mensagem. Como meu celular era de dois
chips, pensei que fosse já alguma resposta sobre o que postara no facebook no
meu número alternativo. A mensagem dizia
“Veja seu email. É urgente”. Fui no
notebook e chequei primeiro o email do repórter mais legal do mundo, mas só havia
duas mensagens e, pelos assuntos, eram trotes. Os títulos das mensagens eram
“TÁ A PERIGO” e “É TRAVECO”. Nem me dei ao trabalho de ler o que era. Fui então
ao meu email profissional. Nesse momento chega Ambrosio, um pouco assustado,
dizendo que recebera um torpedo pedindo para abrir seu email. Abro meu email e
vejo que tinha uma mensagem do chefão, com cópia para Ambrosio. Tinha um link
do youtube e mais abaixo eu leio: “Depois de assistirem, procurem o RH”. Chamo
Ambrosio e levo o notebook para um canto e abro o link. Aparece um vídeo postado naquele dia já com
300 mil visualizações e cujo título era “As gostosas no Couto Pereira e o
chilique do chefe”. Atrás da gente ouço
o Beto comentando com uma amiga: “ele trocou os canais de áudio e deixou vazar tudo ao vivo para todo o Brasil”. Ponho
o vídeo pra rodar e ouço a voz do Ambrosio : “Aí, Carlitos! Sua gata balzaca
não é de se jogar fora não, mas prefiro minha Lola. Gostosa! A sua também. Vai,
Lolinha, pula mais e balança esse cabelo. Vai, danada! Sabe de nada, inocente! Sorria,
você está sendo filmada pelo tio Ambrosio. Carlitos, Carlitos, se você bobear,
eu fico com as duas”. Então, junto com a voz do Ambrosio aparece uma voz mais
forte, berrando, justo quando sai o gol do Coritiba: “QUEM É O IMBECIL QUE FEZ
ESSA MERDA? JURO QUE MATO, MAS ANTES DE MATAR EU COLOCO NA RUA. PORRA, AGORA SOU
EU QUE ESTOU NO AR“.
Pois
é, amados leitores, foi assim que parei aqui. Ambrosio? Ele está trabalhando num
site especializado em flagras de
atrizes e outras celebridades famosas. E está faturando alto.
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