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2 de julho de 2014

Resgate: Roberto Pedretti


Há cerca de duas semanas eu estava sentado perto de casa, bebendo uma cerveja antes de chegar em casa depois de um habitual dia de trabalho, e estava observando o também habitual monte de lixo que também aguarda para ser recolhido a alguns metros do bar por um caminhão por volta das 20h30. É difícil, por mais cotidiano que seja, não dar uma olhada no lixo acumulado próximo à esquina da minha rua, nem que de relance, primeira pelo volume - parece ser o lixo de todo o Bairro de Fátima, centenas de residências, um dia na vida de cada uma daquelas pessoas, reunido em meros 2 metros quadrados de desagradáveis sacos pretos e azuis, sempre meio remexidos pelos mendigos e cachorros; e segundo, pela sua variedade: num dia há um sofá, noutro um antigo console de videogame, noutro ainda perucas - é imprevisível o que as pessoas escolherão justamente aquele dia para defenestrar de suas vidas!, e nos faz elucubrar sobre o que mudou, para que tenham finalmente decidido dispensá-las. 

Neste dia, havia algo diferente: montes de livros sobre e entre os sacos. Alguns de filosofia, outros de história, indistintamente misturados a carne estragada e garrafas de refrigerante. Eu soube disso porque, tendo visto as lombadas de longe, levantei da minha mesa e fui tentar ver, pelo que ficava exposto das capas, do que se tratava - eram livros bons, na qualidade do que continham e no estado em que se encontravam. Livros praticamente novos. Até onde eu podia ver, nada era impossível, raríssimo ou atrativamente obscuro. Eram coisas que se pode comprar apenas com algum dinheiro voltado para isso - e, certamente, nada que valesse colocar a mão em meio aos detritos variados para extrair. Eu então retornei à mesa e ao meu copo, apenas um pouco melancólico por pensar que, quem quer que tenha disposto daquilo, não tenha se preocupado sequer em colocar num cantinho um pouco destacado, sobre um saco plástico qualquer, um lugar no qual eles pudessem se destacar do lixo geral como algo que tivesse o mínimo de valor. Essas coisas acontecem, eu pensei. E terminei meu copo. E pedi mais uma cerveja. E um pouco depois o caminhão chegou. 

Os rapazes da Comlurb chegaram fazendo seu trabalho reto e certo, recolhendo os sacos, limpando os arredores, catando o que os sacos não contiveram - mas não faziam maiores distinções: talvez depois de um dia inteiro fazendo exatamente aquilo, às 20h30 ninguém estivesse mais com cabeça para distinguir a qualidade de nada, e os livros eram lançados à caçamba com o mesmo indistinto profissionalismo com o qual o eram caixas de ovo e papelão mofado. Eles nem devem ter tido como fazer aquela minha reflexão de bar: se está no lixo, é lixo, e, se como dizia Vespasiano, o dinheiro não tem cheiro, o lixo certamente tem, e esse cheiro o nivela a uma homogênea condição de algo que não é mais desejado. 

Mas depois de alguns sacos recolhidos, eu vi, por debaixo, uma outra lombada, isolada das demais, de um livro grosso, e capa brilhava com o caldo que lhe tinha sido esparramado pelo lixo de cima. Eu me aproximei rápido, enquanto eles terminavam de acondicionar no caminhão os sacos que já tinham recolhido. E ali era uma edição portuguesa de "A Sociedade Feudal", de Marc Bloch, inteira, coesa, apenas suja porque tinha sido posta onde a sujeira toda do mundo podia danificá-la. Dessa vez não me contive. Antes que os lixeiros voltassem, eu a tirei dali com um saco plástico que tinha na mochila, e a levei para a mesa. Ali estava algo diante do que eu não pude me conter: um livro que custa mais de R$100, que é a base de milhares de monografias no mundo todo, que se eu mesmo, Roberto, quisesse adquirir naquele momento teria que importar e ter paciência para começar a lê-lo. Alguém o tinha lançado junto com todo o lixo comum e, provavelmente, providenciado que fosse encimado por alguns dos sacos que ajudaram a sujá-lo daquele jeito. 

Eu o levei para casa lacrado por outros três sacos plásticos. Abri apenas na área de serviço do apartamento e lavei a capa e contracapa, bem como os cortes lateral, superior e inferior com água morna. Levei para o trabalho no dia seguinte, e apliquei benzina sobre as capas para retirar as manchas extras o levei para a sala do ar condicionado, onde durante dois dias deixei suas páginas abertas em pontos diferente à frente de um fluxo de ar contínuo, que foi retirando o cheiro e deixando que o material orgânico do bom papel do qual ele é constituído se recuperasse, Tiras de contact bem finas ajudaram a repor no lugar as lascas da capa que se desprenderam, e uma fisioterapia radical, que consistiu em deixá-lo sob uma massa de livros muito mais pesada que ele durante a última semana, contribuiu para que recuperasse suas formas retilíneas, que tinham sido esgarçadas pela posição troncha na qual ele passou provavelmente todo aquele dia em que o encontrei sobre uns bons quilos de matéria em decomposição. 

Hoje, recuperado, "Sociedade Feudal" mora na minha estante. Eu não sou um medievalista, mas há muitos recantos da minha curiosidade geral sobre as coisas que podem ser satisfeitos por uma consulta às suas páginas. Meu filho pode ter ainda muito mais curiosidade sobre o assunto que eu, e o que ele procura continuará ali. Com apenas um grama de respeito, este livro continuará nos servindo por muitos anos. Provavelmente sobreviverá a todos nós que hoje respiramos e andamos por ai. Eu não o resgatei por que precisava dele; eu o resgatei pelo absurdo de que ele estivesse na posição em que estava. 

Não sou um bibliófilo inveterado, nem um desses defensores ferrenhos do físico contra o digital. Simplesmente acho que o velho cliché "livro não se joga fora" tem que deixar de ser um cliché para tornar-se uma verdade simples. Jogar o trabalho humano que já está concretizado e perfeito no lixo antes que ele seja capaz de beneficiar todos os seres humanos aos quais está destinado é é de uma torpeza que me assusta um pouco. Mas ao longo da história, em tempos mais bicudos, isso foi feito incontáveis vezes - e não por descuido e ignorância, mas ativamente!, queimando-os geralmente. Não era apenas "o conhecimento que não se precisa ter" mas o conhecimento "que não se deve ter". Aqui e agora, no momento e lugar em que eu e aqueles que me leem vivemos, no qual se pode pensar e falar basicamente qualquer coisa, não faz sentido descuidar-se assim. 

Que as pessoas que cansaram dos seus livros os ponham confortavelmente num banco de praça, ou nos degraus de uma escada, ou sobre uma surrada toalha de praia longe das marés. Apenas que não seja lixo ordinário. Haverá quem queira. E haverá quem precise.


Um comentário:

  1. Pedretti, belo texto, aliás como é usual em você. Belo e emocionante. Interessante porque recentemente minhas filhas deram uma arrumada no quarto e separaram vários livros que não querem mais. Ontem eu então fui ver com elas, um a um, retirei da pilha dois livrinhos que foram co-produção delas na escola (imagina, isso quero pro resto da vida), mais um lindo que não me contive e salvei também um do corpo humano, já que ontem fui estudar ciências com elas, hoje é a prova, e o livro, embora bem mais fácil do que a matéria que elas estão dando na escola, era um convite, um aperitivo que preparou bem o prato principal, não tem digestivo. Bacana que elas cuidaram para colocar os livros num saco exclusivo, limpinho, e me disseram que era para doar, sem eu ter falado nada. Então me comuniquei com uma amiga que é biblioterapeuta e atua em projetos voltados para crianças perguntando se ela se interessava. Hoje ela me respondeu que sim, fiquei feliz, os livros encontrarão novos donos que saberão ler nas linhas e entrelinhas. Aí vejo seu texto, tão oportuno. Foi assim quase uma dor quando eu ia vendo os livrinhos com elas, "Tesoura das cantigas para crianças", que cantamos tantas vezes juntas, "A bruxa Vassorilda", belíssimo, cada página é um cenário, "Até as princesas soltam pum", que me ajudou a falar pra elas que o imperfeito é que é perfeito, "Os pesadelos de Lisa", que introduziu o medo nas nossas conversas, falando dos temores de cada um e como enfrentá-los, "Camila vai ao médico", uma graça de livro, tão legal para as crianças não temerem os médicos, as injeções e entenderem que às vezes algo que nos causa dor é o que vai nos curar, "Clifford no circo", mais lúdico, um cachorro muito lindo e desastrado, tinha até uma série na TV, e vou parar por aqui porque já estou com os olhos úmidos, arrumar livros é uma viagem, uma saudade, é nossa estória também em cada página. Muito triste saber que há quem jogue fora e no lixo a sua própria história, mas é muito bom saber que há os médicos e fisioterapeutas salvadores que podem recuperar as estórias e devolvê-las à história, à vida, passando e marcando novas gerações.

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