Quando
se fala das agruras da Segunda Guerra - ou mesmo e quase sempre, de guerras
outras, conflitos ou catástrofes - é comum dizer-se, até com certo orgulho, que
o Brasil jamais passou por nenhum aperto resultante de semelhante maldição. O
povo brasileiro, eleito de Deus, Dele só recebe benesses. E Deus, em Sua
“infinita e direcionada misericórdia” fica responsável por nos
curar todas as mazelas e por nos manter longe de toda e qualquer possibilidade
de desgraça.
Talvez não dê mesmo para comparar dores. Quem
sente, sente; quem não sente só pode ser solidário. Mas isso é raciocínio de
gente grande, de adulto que já aprendeu a pensar com a cabeça. Mas criança...
criança “pensa” mesmo é com o coração, e com o estômago! Assim, as loucuras de Hitler, os arroubos assassinos de Mussolini, a perversa índole dos japoneses, eram coisas de ouvir
falar nos rádios de capelinha
encarrapitados em etageres e cômodas, à volta dos quais sentavam família e
amigos para escutar novidades do “conflito europeu”.
Crianças brincavam de roda e pique na rua, que era
mais delas que dos carros poucos, ainda mais àquela hora já passada do jantar.
Entravam afogueadas, para lavar pés, mãos e rosto, e tomar uma última refeição
antes da cama:- um pouco de leite e... pão com manteiga. E aí as conseqüências
da guerra faziam sentido para elas.: no pão, nos biscoitos, e em tudo mais que
dependesse de trigo importado. E de manteiga. A palavra era racionamento.
É, isso também tinha na Europa, lá onde as coisas estavam “pegando fogo”, e onde tinha um maluco
baixinho, com um bigodinho esquisito, que cumprimentava levantando o braço
direito, rijo, gritando “rairritler”.
Aqui não tinha guerra. Mas tinha o tal racionamento, que fazia o avô
ir até a padaria trocar uns pedaços de papel cheios de rabiscos cada um por um
pão pequeno. Pequenos e horríveis! E era só um por pessoa por dia. Como criança
não contava muito naquele tempo, talvez nem mesmo tivessem um papelzinho para
elas. Mas dava-se um jeito. Partia-se e repartia-se e cada um comia um pedaço.
Para completar a dieta, que tal fubá e farinha de milho?
Era isso que propugnava o baixinho daqui. É. Também
tínhamos um baixinho que não tinha bigode . Curiosamente também
cumprimentava levantando o braço direito, acenando para o povo e falava com voz
mansa aos trabalhadores. Só que, como o outro, também era ditador, e também
subira por golpe. E, mansamente
nos aconselhava a comer mais milho. Bolo de milho era bom; broa de milho era
bom - só não gostava da tal erva-doce que a gente acabava sempre mastigando um
grãozinho “erk!!!!”. Mas era bom com manteiga. Manteiga?! Cadê a manteiga?!
A guerra continuou escorrendo lá longe. Um dia... acabou. Aquela guerra. Muita festa, muita gritaria,
muita felicidade jogando io-iô em meio às muitas toalhas de plástico com que -
dizem - foi paga nossa “dívida de guerra”. Arrumando cristaleiras e
guarda-comidas, quantos pães mofados foram encontrados?... Posso falar de pelo
menos dois dentro da biscoiteira de cristal verde lá de casa. E derramei pranto
sentido, enquanto tentava imaginar que dia teria sido aquele em que podia ter
comido só mais um pedacinho...
Ilnéa...
lembrando ainda.
(com Norma Lannes ao fundo)
Ah Ilnea, em cada época e circunstância também temos nossos racionamentos, a minha não era por circunstância era por regra mesmo rsrsr Ah a vida, quantas lembranças, eu, criança, também não entendia a falta, eu queria comer mais pão misturado com leite, pois desse modo, ocupava mais espaço no estômago e íamos dormir iludidos kkkk, bons tempos, apesar do miserê.
ResponderExcluirMuito bom, Ilnéa, um pedaço de existência, um momento da sua história que faz parte da História do mundo. Uma visão sutil e interessante nas entrelinhas. Crônica da boa.
ResponderExcluirCarlos Rosa Moreira.