Fundado em 28 de Setembro de 1998

24 de julho de 2014

Memórias de Pão e Manteiga: Ilnéa País de Miranda




Quando se fala das agruras da Segunda Guerra - ou mesmo e quase sempre, de guerras outras, conflitos ou catástrofes - é comum dizer-se, até com certo orgulho, que o Brasil jamais passou por nenhum aperto resultante de semelhante maldição. O povo brasileiro, eleito de Deus, Dele só recebe benesses. E Deus, em Sua “infinita e direcionada misericórdia” fica responsável por nos curar todas as mazelas e por nos manter longe de toda e qualquer possibilidade de desgraça.

            Talvez não dê mesmo para comparar dores. Quem sente, sente; quem não sente só pode ser solidário. Mas isso é raciocínio de gente grande, de adulto que já aprendeu a pensar com a cabeça. Mas criança... criança “pensa” mesmo é com o coração, e com o estômago! Assim, as loucuras de Hitler, os arroubos assassinos de Mussolini, a perversa índole dos japoneses, eram coisas de ouvir falar nos rádios de capelinha  encarrapitados em etageres e cômodas, à volta dos quais sentavam família e amigos para escutar novidades do “conflito europeu”. 

           Crianças brincavam de roda e pique na rua, que era mais delas que dos carros poucos, ainda mais àquela hora já passada do jantar. Entravam afogueadas, para lavar pés, mãos e rosto, e tomar uma última refeição antes da cama:- um pouco de leite e... pão com manteiga. E aí as conseqüências da guerra faziam sentido para elas.: no pão, nos biscoitos, e em tudo mais que dependesse de trigo importado. E de manteiga. A palavra era racionamento. É, isso também tinha na Europa, lá onde as coisas estavam “pegando fogo”, e onde tinha um maluco baixinho, com um bigodinho esquisito, que cumprimentava levantando o braço direito, rijo, gritando “rairritler”.

          Aqui não tinha guerra. Mas tinha o tal racionamento, que fazia o avô ir até a padaria trocar uns pedaços de papel cheios de rabiscos cada um por um pão pequeno. Pequenos e horríveis! E era só um por pessoa por dia. Como criança não contava muito naquele tempo, talvez nem mesmo tivessem um papelzinho para elas. Mas dava-se um jeito. Partia-se e repartia-se e cada um comia um pedaço. Para completar a dieta, que tal fubá e farinha de milho? 

          Era isso que propugnava o baixinho  daqui. É. Também tínhamos um baixinho que não tinha bigode . Curiosamente também cumprimentava levantando o braço direito, acenando para o povo e falava com voz mansa aos trabalhadores. Só que, como o outro, também era ditador, e também subira por golpe. E, mansamente  nos aconselhava a comer mais milho. Bolo de milho era bom; broa de milho era bom - só não gostava da tal erva-doce que a gente acabava sempre mastigando um grãozinho “erk!!!!”. Mas era bom com manteiga. Manteiga?! Cadê a manteiga?!

      A guerra continuou escorrendo lá longe. Um dia... acabou. Aquela guerra. Muita festa, muita gritaria, muita felicidade jogando io-iô em meio às muitas toalhas de plástico com que - dizem - foi paga nossa “dívida de guerra”. Arrumando cristaleiras e guarda-comidas, quantos pães mofados foram encontrados?... Posso falar de pelo menos dois dentro da biscoiteira de cristal verde lá de casa. E derramei pranto sentido, enquanto tentava imaginar que dia teria sido aquele em que podia ter comido só mais um pedacinho... 


Ilnéa... 

lembrando ainda.

(com Norma Lannes ao fundo)


2 comentários:

  1. Ah Ilnea, em cada época e circunstância também temos nossos racionamentos, a minha não era por circunstância era por regra mesmo rsrsr Ah a vida, quantas lembranças, eu, criança, também não entendia a falta, eu queria comer mais pão misturado com leite, pois desse modo, ocupava mais espaço no estômago e íamos dormir iludidos kkkk, bons tempos, apesar do miserê.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom, Ilnéa, um pedaço de existência, um momento da sua história que faz parte da História do mundo. Uma visão sutil e interessante nas entrelinhas. Crônica da boa.
    Carlos Rosa Moreira.

    ResponderExcluir

Prezado leitor, em função da publicação de spams no campo comentários, fomos obrigados a moderá-los. Seu comentário estará visível assim que pudermos lê-lo. Agradecemos a compreensão.