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18 de dezembro de 2013

Prêmio UFF 2013: crônica classificada de Carlos Benites



Alguém está na calçada



















As redes sociais nos últimos anos passaram a representar papel importantíssimo na sociedade. Tivemos uma mobilização intensa da população iraniana que fez das redes sociais uma importante plataforma de crítica ao regime. E aqui no Brasil recentemente tivemos uma explosão jamais vista em que as redes, principalmente o facebook, twitter e o youtube, eclodiram um movimento que nem a mídia televisiva foi capaz de brecá-lo. Nos dois casos, houve uma certa incredulidade. No caso do Irã porque sua população não tinha até aquele momento um perfil que a vinculasse a um instrumento que identifica a modernidade, pelo contrário, todos a ligavam ao conservadorismo, principalmente por seu vínculo religioso em todos os movimentos políticos recentes.  E no caso das manifestações no Brasil, estrangeiros e até brasileiros tentavam entender o que se passara. O que poderíamos afirmar somente é que as redes serviram como motor propulsor para que as duas populações encontrassem dentro delas mesmas uma força que estava presa.
Mas as redes não funcionam hoje somente para a mobilização da sociedade em grandes eventos. Ela tem sido capaz de fazer com que personagens, que passariam anônimos em qualquer situação, se transformem em celebridades instantâneas, ganhando até popularidade mundial. Um dia desses recebi uma foto que me foi compartilhada por uma amiga que estudou comigo no Liceu. Era a imagem de um morador de rua de Porto Alegre deitado e enrolado em um cobertor. E lendo um livro.  Esse fato – ler um livro – detonou uma reação no autor da foto e respectiva postagem, pois só aí ele prestou atenção no citado morador de rua. A partir da postagem da foto, ela transformou-se num viral, que recentemente descobri que é algo que explode de forma inesperada na internet, compartilhado e visualizado por um enorme número de pessoas.  Ou seja, o autor da foto só “encontrou” o rapaz deitado ao relento porque ele lia um livro, e as pessoas que a compartilharam só encontraram os diversos moradores de rua que eram invisíveis aos seus olhos após aquele dia. Caso o mendigo leitor estivesse deitado sem o livro e até sem cobertor, o fotógrafo possivelmente passaria direto e, talvez, se fosse perguntado cinco minutos depois sobre o que tinha visto, ele nem lembraria que tinha alguém deitado na calçada.
Isso me fez lembrar o Amigo. O conheci lá pelos meus seis ou sete anos, quando ia cortar o cabelo na barbearia na Rua São João junto com meu pai. Ele aparecia sempre para pedir dinheiro para os barbeiros e frequentadores do local. Dizia que era para completar para o almoço. Chegava sempre sorrindo, dizia que se não tivessem nenhum cruzeiro não teria problema, que ele poderia pedir a outras pessoas na mesma rua. Mesmo depois de receber só um centavo de um ou outro ainda ficava por um bom tempo e conversava alegradamente com os presentes, contava piadas, falava sobre tudo. Esses milicos ainda destruirão o Brasil, dizia ele. Ele representava para mim um mistério. Sempre brincava comigo, dizia que eu seria jogador de futebol ou astronauta, que seria o primeiro brasileiro a chegar à Lua. Ninguém sabia seu nome, era apenas o Amigo, nome escolhido porque ele tratava a todos por “ô, amigo!”. Mas diziam que ele era de família rica, e estudara em bons colégios, alguns até falavam que fizera faculdade. Mas as teorias se dividiam em várias correntes: a primeira de que ele fora mandado embora de casa, e essa corrente se dividia em outras, de que teria sido por uma briga com os pais por conta de política, outra que diziam era que ele ousara ter um relacionamento com a filha de uma família rival e a subcorrente que mais repetiam era de que quando servia no Exército uma bomba estourara perto dele, ferindo sua cabeça e sua perna direita – ele tinha uma ferida grande na perna e mancava – e acabara pirando, o que acabou fazendo com que sua família não o aceitasse. Outra corrente teorizava que ele mesmo optou por sair de casa, discordando de tudo, e que não queria viver de riqueza. Ainda havia uma terceira teoria que falava que ele teria uma casa bem grande, mas que só usava para dormir, preferindo viver nas ruas, porque perdera toda a família num grande desastre. Para mim ele era apenas o Amigo. E foi assim por vários anos. Por algum motivo parei de ir ao barbeiro preferido pelo meu pai e, assim, deixei também de ver o famoso pedinte da rua São João.
Estava já próximo às provas do Vestibular. Época em que eu não tinha tempo para nada. Só pensava nos exames, morrendo de medo, temendo o fracasso. Saía do Liceu e ao invés de ir para casa, decidi ir na direção contrária, pegando a Amaral Peixoto em direção às Barcas. Quase em frente à Sabiá Discos, onde as pessoas mais se aglomeravam, disputando espaço, filas de ônibus, bancas de camelôs, homens mostrando as maravilhas de um produto milagroso - para limpar o chão de sua cozinha, madame - e o corre-corre normal da cidade, bancários querendo voltar do almoço para explorarem e serem explorados, a fiscalização querendo pegar os camelôs e esses suspendendo suas bancas para escaparem – OLHA O RAPA!  Ou seja, tinha de tudo. Enquanto isso, eu ia devagar, pensando nas danadas das provas. De repente, noto mais a frente que as pessoas que iam na mesma direção que eu enviesavam para a esquerda e aquelas que vinham na minha direção iam para a direita. Pensei, deve haver um buraco ali. Continuei em linha reta para ver do que se tratava. Então, após o último se desviar, eu já dava o próximo passo quando esbarro com o pé direito em algo e ouço um barulho metálico. Olho para baixo e vejo algo que parecia uma tigela, mas que depois olhando melhor, parecia mais um prato bem fundo de alumínio, daqueles que minha mãe usava para nos dar mingau, e uma moeda de cinco centavos que quase caiu no chão, rodopiando pelas bordas do prato até parar. - Cuidado aí, seu Gomes! Quer que eu perca meu negócio? Havia um mendigo sentado na calçada, tendo ao lado uma muleta, que ficava encostada e amparada no muro, a tigela em frente à ponta de sua perna direita, que vi que tinha sido amputada na altura do meio da canela e tinha a ponta toda enfaixada por um pano encardido. E dois livros em capa vermelha dura, parecendo ser de uma coleção, logo leio: Crime e Castigo I e II. Vi que a reclamação era comigo, mesmo que ninguém me chamasse de Gomes. Mas o grito veio logo depois que esbarrei no prato. E aquilo me deu um sobressalto também, pois meu sobrenome era Gomes. Olhei para o rosto com a barba enorme e logo reconheci.  Era o Amigo. Talvez ele ouvisse que chamavam meu pai de Gomes e se lembrara de mim. Ou então ficou louco e me confundiu com meu pai.


Parece incrível, mas o tempo entre o esbarrão, o som da moeda no prato, a reclamação, a conferência e catalogação dos bens do mendigo e da verificação de sua própria condição física, além do reconhecimento de seu rosto durou pouquíssimos segundos, que pareceram uma eternidade, tal o desconforto que senti após ser encarado. Logo repeti o que os outros transeuntes faziam, desviei para a esquerda e segui o passo. – Nem uma moedinha, astronauta?
No dia seguinte, mesmo com pressa de voltar para casa e tendo que estudar, uma força me levava para o caminho contrário. Lá estava o desvio das pessoas, que passavam automaticamente por ele, como um objeto invisível. Fiquei de longe observando o cenário e ouvia o barulho de moedas caindo e em seguida o via sacudindo o mesmo prato de alumínio com o som de uma moeda chacoalhando. Resolvi tomar coragem e segui na sua direção, peguei uma moeda do bolso e parei. Na mesma hora ele me encarou. Dessa vez não havia raiva no olhar. Um sorriso misterioso, misto de deboche, esperança e também de desafio. Não conseguia identificar qual característica daquele olhar se sobressaía. Sei que sentia todos os efeitos sobre mim. Sacudiu o prato. Joguei a moeda e olhei que só havia uma moeda. Onde estavam as outras que eu vi o povo jogando? Deduzi que o artifício era deixar só uma como chamariz, escondendo as outras. Obrigado, AS-TRO-NAU-TA! E soltou uma gargalhada. Repeti o trajeto por vários dias seguidos, semanas, meses. Todos os dias, ao final das aulas, lá estava ele. Sempre a moeda brilhando no prato, a muleta ao lado e as pessoas desviando no automático, como se fosse realmente para não caírem num buraco esquecido pelo poder público. E os dois volumes de Crime e Castigo, que em alguns dias estavam abertos.
Final do ano, saio da aula, e vejo um reboliço. Gritos. Duas senhoras e o Amigo. Pelo que ouvia, deviam ser donas de uma das lojas da galeria e moravam ali perto. Queriam retirá-lo dali. Nós iremos lhe dar banho e comida, mas saia daqui. O mau cheiro está incomodando a freguesia. Ele gritava. Quero ficar! Daqui não saio. Dois homens ajudaram as senhoras e o seguraram. Sem escapatória, ele segura o prato, mete a mão direita no bolso e ouço barulho de moedas, pega com a outra mão a muleta. Ele me vê. Astronauta, os livros, os livros! Eu vou atrás, atrapalhado pela multidão curiosa. Entraram no prédio ao lado da Caixa Econômica e eu atrás. Não me deixaram subir, mas estiquei a mão com os livros e ele conseguiu agarrá-los. Obrigado, astronauta.
No dia seguinte, o Amigo não estava ali. Nem no seguinte. Nem nos outros. Ouvi rumores, sem confirmação, que um mendigo matara duas senhoras num prédio do Centro da cidade. Uma seria dona de uma joalheria da galeria e a outra sua irmã. O mendigo fugira, levando uma bolsa de dinheiro, mas que deixou quase tudo na calçada, distribuindo com os meninos de rua e prostitutas que faziam ponto em frente ao prédio. Nunca ninguém mais o encontrou.

8 comentários:

  1. Benites, adoro textos com crítica social e sua crônica é um ótimo exemplo. Um alerta literário para nossa visão que anda muito turva. Mandou bem meu chapa, muito bem. Parabéns!!!

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    1. Rita, obrigado pelas palavras. Na medida do possível, procuro colocar um pouco de crítica social, de estar ao lado dos movimentos sociais. Mas o tema da crônica veio de várias situações vivenciadas, transformando vários "Amigos" em um só.

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  2. Benites, conseguiu fazer uma passagem tão sutil e envolvente do relato inicial para a história do personagem, que voltei a reler o começo para descobrir onde eu tinha sido enganada....rs...me peguei viajando no texto.
    Muito bom, amigo. Parabéns. Belíssimo texto.

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    1. Consuelo, querida! Em nossa conversa sobre o texto, com expressões diferentes da minha, você soube captar algo que eu só decifrei no dia da entrega do prêmio, quando eu reli a crônica. Você disse que eu comecei quase como uma expressão jornalística para depois entrar numa contação de história. Concordo. Por isso que eu te falei que eu comecei meu texto como crônica, categoria na qual meu texto concorreu, para depois entrar como conto.
      Obrigado pelas palavras e pela amizade.

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  3. Benites.
    Como a Rita , tambem apreciei o olhar social da cronica.E a narrrativa é suave e nos enreda ,acompanhando o texto.Fico feliz por seu empenho em publicar seus textos.Parabens! Ceci Lohmann

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    1. Obrigado, Ceci. Sinceramente, acho que tenho que melhorar muito e muito. Gosto sim de colocar um olhar social, mas vejo que a literatura é mais do que isso, e é nesse mais que eu preciso melhorar. E esse meu empenho é também meu empenho em colocar meus insights no papel. Falta-me ter e usar aqueles "papeluchos" que a Ilnéa carrega. Quantas e quantas ideias me chegam e acabam morrendo ali mesmo. Mas esses concursos literários acabam me dando um gás pois me obrigam a passar por cima de quaisquer impedimentos, para sentar em frente ao computador e escrever.

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  4. Oi, Benites, gostei da crônica. Parabéns! Lembrei da biografia de J. D. Salinger, autor de "O Apanhador no Campo de Centeio" que parece ter sido alvo de inspiração de alguns leitores para cometerem atos dramáticos. Eu não li o livro ainda, só um artigo falando vagamente do autor. Abraços!

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    1. Obrigado, Sonia. Agora vou ter que ler a biografia do Salinger (coincidentemente, hoje sonhei que estava mexendo na minha estante e via meu exemplar de "Apanhador ...") para entender melhor sua mensagem...rs... Que bom que você tenha gostado... Na realidade, acho que vocês gostaram mais do que eu...rs... Sobre inspiração, o Amigo foi inspirado em três personagens reais e um ficcional. E sobre inspiração literária, além do citado personagem de ficção, lendo o texto com calma, e tendo já lido um determinado livro, dá pra perceber uma forte inspiração para certo trecho do livro.

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