Adamastor
Dois corpos próximos entre os escombros. Homem e mulher na faixa dos
40.
Dito
assim a história acaba. Acabaria para o passante sabedor que o hotel da rua do
Rosário ruiu à 1h da tarde e que só trouxe consigo os olhos e a curiosidade. O
fato de estarem próximos não lhe diria nada. Mero dado fortuito, randômico
lance de dados – face voltada para o seis ou para o um. O fato de estarem nus
também não. Um poderia estar tomando banho no quarto 601, o outro ainda não se
vestiu no quarto 102.
Mas
não para mim, agente especial de companhia de seguro. Conhecem-se bem: de
cofres escancarados para receber a prestação do prêmio, avaras para pagá-lo
depois do sinistro. Eu preciso saber que ela se chama Rosa e ele Expedito, que
vinham com intermitência ao hotel, escolhiam o quarto 402, sempre na hora do
almoço. Quem me diz é Salvador, o gerente do hotel, que tinha saído dez minutos
antes de 1h para fazer aposta na mega sena da virada numa loteca ali perto.
Preciso
saber ainda mais – que Rosa era caixa de banco na rua Almirante Barroso,
Expedito tinha escritório de advogado na rua México. Cada um era casado. Rosa
estava em processo de divórcio, Expedito vivia maritalmente com esposa e
filhos.
Pronto.
Aqui também há um limite, para além do qual a Companhia não se interessa. Mas
não para mim. Não me satisfaço com os efeitos práticos dos fatos. O realismo
utilitário empece a imaginação. Os direitos da imaginação e da poesia hão de
sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa.
Quero
ir além. Por isso escrevo ficção. É meu desafogo nas horas de folga. Costumo
fabular situações que ultrapassam a realidade objetiva de que disponho, ainda
que sejam as mais banais, como, por exemplo, um desencontro amoroso. Um amante
despede o outro no final do ano e ambos se despedem da vida com a ruína do
hotel.
Expedito
e Rosa são nomes bons. Permaneço com eles. Dão azo a simbolismos úteis para a
história. Expedito era perdulário, impaciente, tinha pressa em viver. Rosa era de uma
alegria efêmera. Murchava antes que a Terra desse sobre si uma volta inteira.
Depois negrejava sob o influxo soturno de saturno.
Gosto
dessa combinação de sons. Forma e conteúdo articulados para servir à narração.
O literato a quem mostro meus textos diz que isso se chama aliterações e
assonâncias, que é um recurso mais próprio da poesia. Ah, quem me dera se minha
prosa fosse sempre poética e leve, não abstrusa, pesada, penosa de ler!
Mas
se o
final é o desencontro, é que antes
houvera o encontro. Como
aconteceu? Podia lançá-los no
reino da Suécia, Rosa e Expedito cortesãos da rainha. Ele a convida a uma
dança, ela aceita, e lá vão voando pelo salão, a valsa unindo os corpos num só
corpo, harmônicos e sensuais no movimento. Nada mais pronto e eficaz para armar
um encontro.
Não,
minha história é banal. Rosa é bancária, Expedito advogado. Ele vai toda
sexta-feira depositar os ganhos da semana no banco da Almirante Barroso.
Expedito achou em Rosa uma graça particular (era de manhã). “Bem que ela pode
substituir Acácia, que começa a tomar ares de mulher casada, a fazer exigências
indevidas, a querer mandar em mim”, pensou ele. Rosa, logo que o viu,
reconheceu que entre todos os homens Expedito era homem único, escusados seus
assomos galantes por supérfluos. “A vontade senti de tal maneira, que ainda não
sinto coisa que mais queira”, diz ela sozinha diante do espelho.
Notem
que tenho controle sobre meus personagens e suas ações, sei o que pensam, o que
sentem e o que fazem. Narrador onisciente, me diz o literato. Por isso, é fácil
deduzir das linhas a assimetria amorosa. Por isso, a relação já nasce sob
risco, germina já o gérmen da separação. A não ser que sobrevenham mudanças
imprevistas, para Expedito é mais um caso extraconjugal, para Rosa é um amor
nunca tido. Ele é volúvel, ela é vulnerável.
Agora
é tratar de juntá-los naquela sequência costumeira, sempre a mesma. O primeiro
passeio, o primeiro bar, a primeira praia, o primeiro cinema, o primeiro
presente, o primeiro jantar, o primeiro beijo, a primeira transa. Trâmite
concluído e processo encerrado, eis que a praxe se impõe na vida dos amantes. A
metáfora burocrática foi a figura de linguagem mais adequada que encontrei para
dar conta do automatismo das relações. Acho triste essa ideia de duas fases do
amor: a conquista e depois a vida em comum. Vida em comum significando estabilidade,
ausência de perigo, coração e mente desligados dos cuidados de continuar a
encantar a outra parte.
As
narrativas curtas são também um pouco assim. O recheio é um enchimento a ar,
simples conduto para o fim. Firula no meio campo prelibando o gol. Daí minha
insistência: é muito importante que o texto ofereça o prazer da leitura,
independente do conteúdo. O essencial na concepção do conto, antes de
começá-lo, é ter nas mãos o princípio e o final, a frase de impacto e a frase
lapidar. A mim, por exemplo, não me custa antecipar agora a extrema sentença de
minha história – “o sofrimento amoroso é uma dor enorme”.
É hora
então de pô-los no hotel, de separá-los. Mesmo porque Expedito já visitou o
lado lunar de Rosa e não gostou do que viu. É homem sem
compromissos, que se
compraz no leve borboleteio por entre as flores. Entabula as
primeiras escaramuças no assédio a Dália, para depois de Rosa. Pois para ele,
Rosa passou, pertence ao depois. Ela de nada desconfia, que é grande dos
amantes a cegueira, não percebe seus amuos e fugas.
Expedito
escolhe o momento sexualmente propício para lhe falar, não com as blandícias do
início, mas com as negativas do fim, que não, não pode, não é mais possível,
você entende? Não, ela não entende, queda e muda, ela não entende, paralisada
de espanto, eu não entendo. Após o ato e o dito, Expedito dorme, relaxando de
um dia de demandas tensas.
Não
Rosa. Como pode dormir uma pessoa posta ao desamparo, aflição e desengano
cumulando um coração já de si sempre triste? Rosa rumina, passa e repassa
pensamentos, entre eles, este: “Eu não ligaria se ele morresse, mas não
suportaria vê-lo afastar-se de mim”. Grave e gravíssimo pensamento, grávido de
consequências. É ele que justifica e explica os crimes passionais. Logo, não
seria inverossímel, num contexto armado desse jeito e com uma personagem
construída dessa maneira, doentiamente melancólica, que uma arma se guardasse
de sobreaviso em sua bolsa, prestes a ser usada num momento de desespero.
Ouve-se
um estampido. Podia ser o ruído de uma rachadura, fissura minando o alicerce
central do edifício. Não, é Rosa que acabou de fazer barulho no quarto 402, e
agora fala. Fala para quem, se há só um corpo imóvel e surdo deitado ao lado
dela? Mas fala, palavras oriundas de um mundo remoto, ignotas memórias
redivivas, lenda, sonho ou fantasia, ela fala, ou recita, “já que minha
presença não te agrada, que te custava ter-me neste engano, ou fosse monte,
nuvem, sonho ou nada? Daqui me parto, irada e quase insana da mágoa e da
desonra aqui passada, a buscar outro mundo.”
O
literato aconselhou-me a terminar aqui. Que seria este o auge do relato, que
conviria deixar insinuado o suicídio de Rosa. Mas eu não quero deixar nada
insinuado. Houve o suicídio, claro que houve! qualquer criança intuiria, ainda
que o passante curioso não visse a perfuração produzida por projétil na têmpora
direita de Expedito, nem visse a perfuração produzida por projétil na têmpora
esquerda de Rosa (ela era canhota). Além disso, seria mentir ao leitor, não
cumprir o final anunciado.
Quero
sobretudo pôr moral na minha fábula, tenho todo o direito a fazê-lo. Quero
afirmar com todos os prefixos que esta é uma história de desafeição, de
desestima, de desamor, é soneto de separação, não soneto
de fidelidade, que, não
importa de onde
venha, se da fera ou da bela, do macaco ou da
dama, do corcunda ou da donzela, do gigante ou da ninfa, o sofrimento amoroso é
uma dor enorme.
Benito, que primor de conto! Eu li quando cheguei em casa à noite. Excelente, mesmo. Somente um literato seria capaz de escrevê-lo. E que cereja no bolo o título, hein? Show, parabéns!
ResponderExcluirAplaudo de pé esse belo conto. Você voltou a pegar a mão. Uma linguagem bem semelhante a do conto "No elevador", meio crônica, meio conto. Bem rodrigueana. Adorei os tons metalinguísticos, numa dose perfeita. E você fazendo pouco do seu conto.
ResponderExcluirAchei esse conto do Benito simplesmente magistral. Não li conto melhor neste Prêmio UFF e considero, inclusive, que deva estar entre os melhores contos brasileiros da atualidade. Consegue ser erudito, sem ser pedante. Consegue emocionar, mesmo sendo uma estória que se nota racionalmente (e muito bem) construída. Consegue antecipar a frase final no meio do texto, sem no entanto desfazer o impacto poético que tem o fecho da estória. Aliás, consegue ser super poético, quando, até onde sei, Benito não é propriamente um fã declarado de poesia. Enfim, achei "Adamastor" uma obra prima. Parabéns, Benito!
ResponderExcluirai se construindo,o domínio sb o conto.Não sou literata,mas gostei muito..Alem disso é extremamente realista
ResponderExcluirUma das frases que me tocou.:" O realismo utilitário empece a imaginação. Os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa"
Bem sociológica
Abraços ceci Lohmann
Solta o texto, Benito, deix'ele fluir. O narrador interfere muito na história, fica instruindo o leitor o tempo todo, num plano diferente da história que se conta. Espero que o narrador não seja o próprio autor. A menos que a história que se proponha contar seja a do narrador que não deixa seu texto decolar. O estilo do narrador prevaleceu de forma impertinente em relação às possibilidades que a história prenunciava, e o resultado frustrou a expectativa inicial.
ResponderExcluirMas, prezado Anônimo, a história aqui é a do narrador. O agente especial da companhia de seguros e como o seu trabalho e as fortes imagens do casal morto lhe tocam a sensibilidade. O burocrata que se atira ao texto literário, sim, inseguro, mas sensível.
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