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8 de novembro de 2013

Cajueiro em flor: Antonio R




H
á duas semanas vi um cajueiro em flor. Cajueiro, eu sei, é palavra pela qual carioca não nutre especiais afetos. Em 1985, recém chegado ao Rio de Janeiro, aprendi com meus amiguinhos que ao me referir a um cajueiro devia dizer pé de caju. Bem, os cariocas é que sabiam das coisas, eu que aprendesse com eles. Que fosse então pé de caju e pé de caju ficou sendo. Alguém pode estranhar essa minha observação e argumentar que dizer pé de caju ou cajueiro dá no mesmo. Não, não dá no mesmo. Ao menos para mim. Pé de caju não tem poesia. Cajueiro sim. Cajueiro é palavra que me soa poético e tem cheiro de infância. Eu, ao tempo de menino, costumava ir ao cajueiro. Cajueiro é palavra que no Ceará daquela época servia tanto para se referir a um pé de caju quanto à sua coletividade. Se havia um lugar cheio de cajueiros dizia-se apenas que se ia ao cajueiro. E esse cajueiro da minha infância era repleto de cajueiros seculares, quase todos deitados à margem de um rio de águas fartas que cortava a região. Eram mesmo cajueiros muito antigos e enormes (da espécie dos cajueiros gigantes), troncos para dois homens abraçarem, senão três. Nunca vi por aqui cajueiros como aqueles. Nenhunzinho.

Durante a floração o perfume se espalhava, impregnando distâncias mata adentro. Até o rio, ali, parecia perfumado com o cheiro dos cajueiros em flor. Na estação dos frutos milhares de cajus se ofereciam gratuitamente. Os cajueiros eram de todos e não eram de ninguém. No chão, tapetes e tapetes de cajus se formavam. Catávamos todos eles para colher as castanhas e depois torrá-las na brasa.  A torra da castanha era um ritual. Estivéssemos na mesopotâmia babilônica algum deus haveria de se agradar do perfume único que exala durante a torra da castanha, verdadeiro per fumum de holocausto divinal.

Voltando ao Rio de janeiro, eu dizia que há duas semanas havia visto um cajueiro em flor. O perfume inconfundível o denunciou. Subi mais um pouco um pequeno trecho elevado da rua, em seguida corri os olhos por sobre os muros altos da casa suspeita e o encontrei ao centro do quintal, solitário. Lá estava o pé de caju, ou melhor, o cajueiro. Senti, então, uma alegria e uma tristeza se apossarem de mim. Alegria por ter encontrado uma casa de quintal grande repleto de árvores e com aquele cajueiro lindamente florido ao centro. Isso porque tem sido cada vez mais raro encontrar casas com quintais grandes e arborizados. Aliás, anda difícil encontrar casas com quintais. Onde moro ainda é possível encontrá-las, até com certa facilidade. Eu mesmo moro numa casa cujo quintal é razoavelmente grande e possui algumas árvores frutíferas: pés de jambo, abiu, cajá, caqui e até coqueiros. Mas a verdade é que os quintais estão sumindo. Os novos loteamentos têm por padrão terrenos com dimensões não maiores que 150m². Dá para construir uma oca e deixar um espaçozinho na frente para acender uma fogueira e assar o aipim e a batata-doce. Como serão os quintais do futuro? Serão como estes que temos visto proliferar por toda a parte? Quintais minúsculos, pelados, com plantinhas (quando as há) sufocadas em vasos e jardineiras? E as árvores? As mangueiras, as jaqueiras, os jambeiros, os cajueiros...? Desconfio que no futuro as crianças haverão de achar que as frutas vêm das gôndolas e bancas de frutas dos supermercados. Assim como já acham que o dinheiro vem de dentro das máquinas onde o papai ou a mamãe enfiam um cartão, digitam alguma coisa para em seguida pegarem um punhado de dinheiro que sai de um compartimento, desconhecendo assim o longo processo que existe para que o papai e a mamãe possam retirar esse dinheiro nas máquinas eletrônicas.

A um habitante do asfalto não é possível explicar o significado de colher um caju no cajueiro e não nas gôndolas do supermercados; torrar a castanha na brasa ao invés de pegar nas prateleiras dos supermercados aqueles saquinhos ou vidrinhos de castanhas torradas nos fornos da indústria para em seguida jogá-los no carrinho junto a outras dezenas de produtos criados pela maravilhosa indústria moderna de bens de consumo. Só os iniciados no mistério que é viver ou ter vivido num outro modo de vida, que está em vias de extinção, podem compreender a relação que pode haver entre o homem e os frutos do cio da terra.

A tristeza ficou por conta de justamente ter encontrado esse cajueiro dentro de um quintal cercado por muros altos. Esse cajueiro em flor que eu vi no centro do quintal grande não é de todos. É de alguém. Os muros o atestam...

E como ainda é tempo de homenagens ao Rei do baião, deixo logo abaixo uma musiquinha singela sobre um cajueiro velho. Espero que apreciem...


   Cajueiro Velho
Luiz Gonzaga





Naquele cajueiro velho
Com um canivete
Desenhei meu coração
Escreví nossas iniciais
Isto a gente faz cheio de paixão
Com uma flecha atravessada
Ficou bem gravata
Lá no cajueiro
História que a gente conta
Quando se dá conta
Do amor primeiro

Ai, ai, cajueiro
Quanto tempo que já faz
Ai, ai, cajueiro
Meu desenho de amor
Não vejo mais

A gente quando nasce, nasce
Nasce outra que a gente entrega o coração
A gente fica tão feliz
Todo mundo diz com satisfação
A planta que não é regada
Fica adoentada, morre no canteiro
Assim é minha vida agora
Morro toda hora
Lá no cajueiro


SG, 05/11/2013


4 comentários:

  1. Excelente texto, Antonio, muito bom mesmo, crônica boa da gota! E você ainda nos oferece esse presente com o Gonzagão! Parabéns pelo texto e não pare de escrever.
    Grande abraço.
    Carlos Rosa Moreira.

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  2. Caro Antônio,
    mais uma vez você me remeteu a infância, ao sítio de meu avô, onde "molecamente" eu roubava as frutas no pé. As vezes era preciso pegar escondido, pois ele gostava de presentear os amigos com as mais bonitas...
    Parabéns.
    Que bom ter o que recordar...
    Beijos ternos,
    Vera.

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  3. Caro Antônio, de fato que essa nova e futura geração não experimentem o gosto do entrosamento entre homem e terra e sim entre homem e tecnologia. Cá estou a farejar como um cão a memória olfativa, palatar, visual, tátil e auditiva dos eventos dos quais você se refere. Assim como você, sou nordestina (Paraíba) e também nasci e fui introduzida nessa iniciação empírica entre humano e natureza in natura. Seu texto é primoroso e nostálgico para mim, fico a lamentar que meu filho não tenha sido criado sem muros, mesmo tendo cercas, elas ainda assim eram mais longínquas e podíamos nos mover sem muita pressa, a caminhada era as vezes longas, mais nos dava prazer em encher nossos olhos com a paisagem, as vezes ressequida, mas não menos amada pela intempéries.

    abraços.

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