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5 de agosto de 2013

Nas malhas do devaneio: entrevista com Dília Gouvea


                                                                                By: Rita Magnago

Às vésperas do lançamento de seu primeiro livro "Nas malhas do devaneio - o dia em que Fernando Pessoa nos reinventou", que acontece no próximo dia 5 de agosto, a partir das 18h, no bistrô da Confeitaria Beira Mar, na Rua Moreira Cesar, em Icaraí, a cliceana Dília Gouvea nos brinda com uma entrevista memorável. E não é que descobrimos que não se trata de seu primeiro livro? Bem, mas isso deixo para os curiosos prosseguirem com a entrevista fazendo as perguntas no campo "Comentários". Aproveitem, porque a professora de literatura e filósofa Dília na internet é coisa rara.



 
Depois de tantos anos convivendo com a literatura, o que te fez lançar um livro agora?
Tenho vivido toda a minha vida, atravessando todos os desertos e repousando em cada oásis, levando na bagagem os livros que me traduzem, que me decifram. Tem sido assim que a Literatura e a Filosofia me criaram as condições de possibilidade para que pudesse enxergar o mundo, a vida e a mim mesma de um modo mais profundo e, sobretudo mais autêntico.  Não concebo a minha existência sem esse diálogo com os pensamentos dos autores que mais escavaram e desceram a esses nossos subsolos sem os quais a nossa vida cotidiana seria um pequeno quintal estreito e cinzento, superficial e medíocre.

Assim, considerei que chegara o momento de poder iniciar um projeto que a muito me entusiasmava. Há uns anos a esta parte tenho promovido os Encontros Literários, formando grupos com amantes da Literatura. Desses encontros surgiu a ideia de fazer breves ensaios sobre os temas das nossas reflexões acerca do que lemos. E temos lido muito.
Todo o esforço do conhecimento, como disse o psicanalista britânico W. R. Bion, é só um breve raio de luz em meio às trevas. Mas esse breve raio de luz pode fazer toda a diferença. Segundo o critico literário Harold Bloom, a grande literatura é sempre reescrever ou revisar, e baseia-se numa leitura que abre espaço para o ver, ou que atua de tal modo que reabre as velhas obras a nossos novos sofrimentos. Os originais não são originais, o inventor sabe como tomar emprestado. Assim, quis inaugurar um diálogo escrito que promovesse releituras desses livros, autores, personagens, temas, como uma extensão desses encontros.
Sempre escrevi muito. Tenho guardados alguns manuscritos de romances históricos que nunca publiquei. Nietzsche afirmara que toda a conquista, todo passo adiante na senda do conhecimento é fruto de um ato de valor, de dureza contra si mesmo, de própria depuração. Acredito que é preciso chegar a si próprio, à sua própria voz, não como uma performance, ou um ato decorativo, mas como um desbravar-se, descascando-se ou escavando-se como José Castello nos ensina.
Ler esses grandes livros e escutar as vozes desses autores, não nos vai tornar melhores cidadãos. A arte é inteiramente inútil, segundo o extraordinário Oscar Wilde. Mas se não o fizer, pode, contudo, tornar-nos mais conhecedores de nós mesmos.
'Nas Malhas do Devaneio' julgo ter encontrado um caminho para levar aos leitores um pouco do prazer que a leitura promove. E partilhá-lo é já um começo de dar voz às inúmeras perplexidades sobre a condição da existência humana. Os maiores escritores do Ocidente são subversivos de todos os valores, tanto nossos quanto deles próprios. Se pudermos contribuir, como Kafka dizia, para quebrar o gelo em nossos corações e, desse modo, abrirmos espaço para a descida voluntária e corajosa em nossos abismos na busca pelo conhecimento do ser que somos já estaríamos dando um passo importante para ampliarmos nossos universos.




O que mais influenciou na escolha do tema "Nas malhas do devaneio"?
Ainda que o devaneio possa confundir-se com o sonho, o devaneio é algo mais: a possibilidade que nos permite, sem tensão e em vigília, criar alguma coisa. Nas Malhas do Devaneio é esse espaço de entrelaçamento entre o prazer do discurso e a reflexão sobre o tema a que me propus – um estudo breve sobre o que chamei da nossa reinvenção produzida por Fernando Pessoa, ou melhor, o modo como, em última instância, a ficção pode criar a própria realidade.

O livro é um ensaio apresentado em forma de diálogo? Explica um pouquinho dessa inovação.
Um ensaio pretende ser um estudo ou uma análise sobre um ou mais temas da Literatura, por exemplo. Fazê-lo em forma de diálogo cria um movimento mais solto, menos formalista, um pouco didático, talvez, mas também mais envolvente.
Imaginei a possibilidade de produzir uma coleção com algumas dezenas de volumes que consistiriam em colocar personagens das obras de diferentes autores dialogando entre si, ou mesmo os próprios autores dialogando com personagens das suas próprias histórias, mantendo acesa a discussão sobre as questões mais pertinentes por eles abordadas. Assim, o próximo livro da coleção, será o encontro do Dr. Fausto (de Goethe) com Madame Bovary (de Flaubert), numa gare de trem em Paris. A obra de Goethe e de Flaubert pelo olhar crítico dos seus protagonistas e também uma reflexão sobre o período histórico que lhe corresponde: a ambiência cultural, filosófica, artística, científica e seu contexto social, político, religioso.
Na verdade o que me instiga a fazê-lo, não é tanto o que essas obras e seus autores disseram ou pretenderam dizer, mas sim o modo como, para nós, hoje, eles nos ajudam, uma vez, mais ao grande confronto com a intemporalidade do nosso drama humano.
O que mais influenciou na escolha do tema "Nas malhas do devaneio"?
Ainda que o devaneio possa confundir-se com o sonho, o devaneio é algo mais: a possibilidade que nos permite, sem tensão e em vigília, criar alguma coisa. Nas Malhas do Devaneio é esse espaço de entrelaçamento entre o prazer do discurso e a reflexão sobre o tema a que me propus – um estudo breve sobre o que chamei da nossa reinvenção produzida por Fernando Pessoa, ou melhor, o modo como, em última instância, a ficção pode criar a própria realidade.


Uma vez você disse que era filha de Fernando Pessoa. Por que você o considera tão fundamental em sua formação de leitora/pessoa?
Ter Fernando Pessoa como um inventor-criador de mim mesma,tem, sobretudo, a ver com o fato de eu considerar que a sua obra de plurais ficções me devolveu a consciência da minha própria pluralidade e, igualmente, da necessidade de me buscar permanentemente nessa diversidade. Como se Pessoa tivesse, verdadeiramente, aumentado o meu próprio eu crescente.


A Dília professora, literata, filósofa, promotora de cafés-concertos, disseminadora dos versos, também é poeta?

Um pouco à semelhança de Heidegger, acredito que a Poesia não é um fenômeno de cultura ou a expressão de uma “alma natural”, mas a obra suprema da linguagem, enquanto dada como projeto de iluminação na clareira do Ser. A poesia é uma forma de pensamento e este, é por essência poetizar.
Para além, ainda, de ser um fenômeno de liberdade, a Poesia arranca do nada algo à existência: seja uma emoção, uma sensação, uma ideia, um sonho, um objeto, uma vivência, o que quer que seja que exista, existe precisamente porque a sua nomeação a criou. E, o ato mesmo de nomear é a essência da Poesia. Dar nome é chamar à existência.
Assim, continuo peregrinando dentro de mim para achar, um dia, quem sabe, a possibilidade de me fazer um pouco poeta.

9 comentários:

  1. O livro é dirigido a quem conhece a obra de Fernando Pessoa ou qualquer pessoa que o leia vai compreendê-lo e conseguir elaborar seus pensamentos sem conhecer tão a fundo Fernando Pessoa?

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    1. Bom dia, Rosemary.
      O livro é dirigido a ambos. Principalmente, pretende ser um incentivo a conhecer melhor ainda a obra de Fernando Pessoa. Esta é apenas uma pequena degustação do quanto ele nos provoca e instiga em nossas vidas.
      Assim,podemos ler Nas Malhas do Devaneio ainda que desconheçamos a sua obra.
      Saudações Pessoanas.
      dília

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  2. Minha irmãzinha tem muitas qualidades, mas duas delas, para mim, brilham tanto quanto seus olhinhos azuis: simplicidade e sabedoria. Mas é a sabedoria de quem sabe que nada sabe, de quem busca consciente e delicadamente, de quem conhece as peças e vai montando devagar e sem medo. Dília combina com Delfos, e agora começa a nos trazer presentes. Estou louco para cair em suas"Malhas". Ainda bem que há "tanto mar a nos separar" de Portugal, deixando-a aqui, junto com a gente.
    Carlos Rosa.

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    1. Meu querido!
      As tuas palavras me enchem de profunda emoção. E eu te agradeço imensamente pela confiança e pelo carinho.
      Abraços fraternos
      dília

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  3. Querida Dília, poucas foram as vezes em que pudemos conversar. Contudo, fiquei empolgada com seu livro. Quando você fala que as leituras nos depuram, nos fazem conhecer melhor. Concordo com você plenamente. Portanto, aguardo ansiosa as malhas de seus devaneios. Infelizmente não poderei ir ao lançamento por conta de compromissos profissionais, mas desde já, desejo-lhe todo o sucesso possível e que seu trabalho possa, quiçá, me instrumentalizar para a continuidade de minha ascese.

    Uma última coisa, quanto a seu modo "didático" no livro, me remeteu ao nosso mestre Platão e ao Leibniz com seus diálogos, posso esperar um tico disso?

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    1. Muito obrigada pelas tuas palavras, teremos certamente outras oportunidades para dialogarmos.
      Nas Malhas do Devaneio traz, também, um pouco de Platão. Assim podes esperar sim um "tico" disso (rsrsrs)
      Abraço
      dília

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  4. Dília é um ser que nos ensina a ver e a ser, através da literatura, com incomensurável generosidade. Identifico no meu trabalho clínico, os personagens descortinados por ela. É ela que me faz companhia nas travessias biblioterapêuticas, me identifica autores e histórias que possam dialogar com pessoas em angústia e isolamento existencial. Uma genuína mestra a quem tenho profunda gratidão pela possibilidade de conviver. Carlos disse muito bem: sabedoria e simplicidade. Acrescentaria um profundo propósito na vida: de sacudir-nos, de tirar nossas vendas, de acordar-nos e contribuir para que cada um seja pleno e saiba aproveitar o que realmente tem valor. Fico muito feliz que suas palavras poderão atravessar gerações através de seus livros e suas malhas. Até dia 05!

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    1. Para a Cris, todas as palavras que eu possa usar para expressar a minha profunda admiração por ela e pelo seu trabalho serão insuficientes e débeis, muito débeis.
      Existem seres que atravessam nossas vidas e nelas se encontram em estado de graça. Com eles crescemos, desenvolvemos e mudamos. Cris tem sido um ser assim: delicado, inspirador, fomentador de muitos e muitos devaneios, parceira inestimável de aventuras poéticas e, sobretudo, uma alma par, com que a falar nos tornamos nós mesmos.
      Gratidão infinda!
      dília

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  5. Para se devanear é preciso manter um equilíbrio exato entre o neurotransmissor excitatório glutamato e o neurotransmissor inibitório GABA (ácido gama-aminobutírico) e não se esqueça de agradecer ou procure saber o estado do gene SLC6A4, que transporta a serotonina, porque ele tem relação com o comportamento artístico e a espiritualidade, além de uma aparente predileção pelo modo devaneio. (DJL)

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