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12 de junho de 2014

Visões da Copa


As histórias que contam

novaes/


Bom dia. Foi sim senhor, trabalhei na obra do Maracanã, virava cimento, levantava concreto, eu que tento me manter reto, no prumo dessa vida. Sim, me dava bem com os colegas. Trabalho em equipe. As metas? Cumpri todas. Sem atrasos, sem faltas. Não sou de faltar, nem nas segundas-feiras. O senhor sabe, segunda é o dia da falta no Brasil. O peão bebe o domingo todo e na segunda não consegue levantar. Eu, não. Gosto da minha cervejinha, mas nada que me derrube. Como? Foi... É... Derrubei um engenheiro lá. Enfiei um soco na cara dele. O cara tava de implicância comigo. Um dia ele me ofendeu. Falei que era a mãe dele, não a minha. E pra ele não esquecer, quebrei esses dente aqui dele, ó. Virou o engenheiro mais banguela do planeta. O quê? Ah, tá... sim senhor... eu aguardo o senhor entrar em contato. Bom dia.

* * * * 

Vem aqui, Zé. Põe a mão na barriga. Sente só. Esse menino pula demais, parece que está torcendo lá nesse Maracanã que você está construindo. Eu sei, eu sei, reformando. Pra Copa do Mundo! Uma obra daquele tamanho, vai ficar bonita? Como está indo? Você não tem me contado nada, antes sempre falava da obra, dos colegas, daquele engenheiro chato... Já tem uns meses que você não fala mais do serviço. Sai de manhã, volta de noite; só vejo que você está cansado, com esse ar aborrecido; aconteceu alguma coisa, Zé? 

Aconteceu, ora, aconteceu que a notícia mais importante, o que tenho pra dizer, é que sua barriga está linda. Lembra o que o doutor falou? Que pro neném vingar você não podia se aborrecer? Nada de esforço, nada de chateação. Até saiu do colégio, parou de dar aula. Repouso absoluto, lembra? E eu vou ficar aqui falando daquele engenheiro lambão? Nada disso! A única obra que me interessa agora é essa que estamos construindo juntos, Rosa, esse filho há tanto tempo querido. Além disso... aquele caso do engenheiro já foi resolvido...

Que sorriso maroto é esse, hem?...

* * * * 

Sim, senhor. Não, senhor. A fila está grande, mas não estou cansado não. É, eu sei. Em pé, lá fora, debaixo desse sol, bem umas três horas, mas eu tô acostumado. Meu trabalho é assim mesmo. Não tenho medo de serviço não. Chova ou faça sol, o suor é o mesmo, sempre molhado. Onde tem tabuleta de emprego, doutor, tem sempre muita gente querendo. O senhor já pensou se pudessem medir esses corações em fila? Quanto de angústia, de medo, de esperança? Quantas histórias tem aí nessa fila, doutor? E cada um chega aqui e conta um pouquinho pro senhor. Como o senhor faz? Escolhe a história mais bonita? A mais comum, né? É, a mais comum. Se tiver muita feiúra, ou muita beleza, o senhor descarta. História exagerada, muita desgraça ou sucesso demais, tudo isso se desconfia, sai do padrão, né? Pra que arriscar? Quanto mais comum, quanto mais igual, melhor. Eu entendo. São peças, né? Quanto mais previsíveis, melhor, menos dor de cabeça. Já pensou se a betoneira tivesse sentimento? Os tijolos? O cimento? Esse então mudava de humor de acordo com a situação. Seco e disperso quando pó. Maleável quando aguado. E finalmente um sujeito duro e definitivo, este senhor Cimento, quando adulto. Chova ou faça sol, doutor, os sentimentos não mudam, nem as pessoas, nem a função das máquinas e dos materiais, nem o trabalho que fazemos com eles. É isso que eu faço, chova ou faça sol. Viro cimento, levanto concreto, em qualquer tempo, isso é o correto. O quê? Por que eu saí da obra do Maracanã? Tô tentando melhorar de emprego, só isso. O quê? Engenheiro? Sei não... Dente quebrado?... ... ... É, tem o telefone aí anotado. Tá, sim senhor... eu espero sua ligação.

* * * * 

Oi, amor, que bom que você chegou mais cedo. Zé, fiquei com medo. Senti umas pontadas na barriga. Fiquei nervosa, aqui sozinha. Liguei pra minha mãe. Conversamos pelo telefone. Ela veio de novo com aquelas histórias de que você é muito esquentado, que não para nos empregos, que não acata chefia, que acaba brigando... Pois eu respondi a ela que você está muito bem lá no Maracanã. Pra ela parar com isso. Mas, quer saber?, mesmo que você seja um pouco revoltado eu não ligo. Você não é um cabeça-quente, suas revoltas têm sempre uma razão de ser. Se eu quisesse um marido frouxo tinha aos montes me querendo, até caras com situação. Mas eu escolhi você. Lembra? A família toda contra e até os vizinhos faziam carga. Inventavam histórias. Aumentavam. Tiravam conclusões. Tudo por causa daquele caso com seu pai. Tanto chamaram você de agressivo. Violento, revoltado, eles falavam. Dizem que você não aceita ordens desde aquele dia. 

Pai, chefe, presidente da República, Papa!... As pessoas pensam que posição é o que faz a pessoa. Eu vi muito cedo que isso não funciona. Um dia cheguei em casa e o velho estava lá, meu pai, bêbado, batendo, xingando, espancando a minha mãe. Parti pra cima dele. Eu tinha 15 anos. Explodi. Desde os cinco anos de idade eu via isso, se não com os olhos, fechados no quarto, via com os ouvidos, sentia com a pele arrepiada de raiva, me afogava, engolia salgado, porque eu não deixava a lágrima sair. Ficou tudo aqui no peito: o choro da minha mãe, os gritos, o corpo marcado, o sangue, junto com o grito que eu queria dar, o maior de todos os gritos do mundo, e que me queimava por dentro porque não conseguia sair. Era um grito adulto demais para a boca de um menino. Impossível de sair. Agora, sempre que eu sofro um abuso, esse salgado volta todo, amarga a minha boca, parece uma onda. Quem se prevalece de posição para ofender, eu não vejo pai, chefe, diretor, presidente; eu vejo só um verme, embriagado pelo poder que não sabe usar, um poder que está se vendo que não cabe dentro daquela pessoa, ela é pequena demais para ter aquele poder. Aí fica tudo deformado: a pessoa, suas atitudes e a função que se esperava dela. Dá tudo errado. Por isso, eu sei muito bem que não é um pedaço de papel que vai me dizer quem é pai, quem é chefe. 

Nem quem é mãe, Zé. As coisas que os papéis dizem, dizem por dizer. Porque as pessoas querem estabelecer por escrito, firmar, jurar de papel passado com registro em cartório, como se fosse possível transformar a verdade em palavras. Eu vejo isso lá na escola. De tempos em tempos mudam os livros de História. Até os de Geografia e Matemática! Descobrem-se novas verdades, novas histórias, que estavam ocultas. E com certeza ainda há outras tantas verdades que não conhecemos, histórias que ainda não contaram. 

De livros eu não entendo, Rosa, eu sei do que eu vejo na vida real. Um chefete não pode xingar minha mãe, do mesmo jeito que meu pai xingava. Se eu fui homem pra avançar pra cima do meu próprio pai, não vai ser ninguém que vai me intimidar e me ofender.

Você tem razão. Essas coisas escritas não valem muito mesmo. Pensa bem: como é possível pegar uma verdade inteira, cheia de senões, cheia de detalhes, de visões e razões diferentes e reduzí-la a uns sinais escritos num papel? As dores entram onde nessas letras? As raivas, as alegrias, as dúvidas? Os medos? A verdade só pode ser conferida com os olhos. Com o tato. Pelos ouvidos da alma. Com os sentidos e os sentimentos. Sou mãe, sou pai, sou chefe, sou presidente!... Podem escrever no papel o que quiserem, não passam de histórias que eles querem nos contar, como se fossem verdades só porque estão escritas num papel. Mas são apenas promessas. São obras de ficção à espera de serem confirmadas pelos sorrisos ou contestadas pelas lágrimas, aprovadas pela satisfação, pelo amor, ou irremediavelmente desacreditadas pela indiferença e pelo ódio.

Como aquela história do seu tio, não é? Ainda bem que você, mesmo adolescente, denunciou aquele safado. Ele teve o que merecia. Um tio de verdade não faria aquilo. Irmão da sua mãe, e ela não percebeu. Pior, não acreditou em você... Você foi valente. Sempre foi. Ainda é. Como você diz? “Nunca se esqueçam de que a rosa, além de beleza e perfume, também tem espinhos”... Mas, querida, chega de se aborrecer com isso, esses assuntos não fazem bem pro neném. Você não pode se exaltar. Agora está tudo bem lá no Maracanã, você não pode se alterar, vamos pensar no neném. 

Zé, por que você chegou mais cedo hoje? Que história foi essa?

* * * * 

José da Silva Quintino, sou eu. Currículo de trabalhador é a Carteira de Trabalho. O senhor pode ver aí onde já trabalhei, tá tudo anotado. É. Sim. Foi. Mas tem umas coisas que não estão escritas aí. O senhor sabe, nessa folhinha pequena aí não cabem as obras que eu já fiz. Não cabem as estradas, rodovias de se perder de vista; não está escrito aí quantos milhares de carros estão passando nelas neste exato momento. Também não diz aí do aeroporto que eu ajudei a reformar e ampliar. Já pensou se viesse na Carteira de Trabalho pelo menos um “muito obrigado” dos passageiros que agora podem pegar seu avião com mais conforto? Ia precisar de um chip nessa carteira, pra poder juntar tanta informação. E tem a barragem, é, hidrelétrica, foi em outro estado, mas a energia dela vai chegar num monte de cidades. Devia vir a lista aí, das cidades beneficiadas e até das famílias, né? Ou pelo menos um agradecimento do Governo Federal. Mas, não, aí tem só o nome da empresa em que trabalhei. É, só o nome do empregador. É a história que essa carteira conta: quem foram os meus empregadores, os meus patrões, e quanto tempo servi a cada um deles. Mais nada. Parece que é só o que conta, não é?... ...

* * * * 

Alô, senhora Rosa? Aqui é do departamento de Recursos Humanos. Estou ligando para dizer que seu marido será recontratado. É, ele vai voltar. Concordamos com seu argumento. Sim. Afastamos o engenheiro. É, foi advertido e afastado para outra obra. A senhora está certa, ninguém pode ofender um empregado daquele jeito. Sim, severamente advertido! Nossa empresa se pauta pela ética nas relações de trabalho, viu? Chefes e operários aqui fazem parte da mesma equipe, somos uma grande família e na nossa empresa todos são respeitados. Isso! Tem toda razão! E... quanto àquela ideia da senhora, de contar essa história horrível, esse caso infeliz, à imprensa e ao sindicato, justo nesse momento em que a comitiva da Fifa está vindo para ver a obra... vamos esquecer isso, não é? A situação já foi resolvida, não acha? Ah, muito obrigado! Obrigado mesmo!

* * * * 

Rosa, meu amor, nem te conto. A situação vai melhorar muito lá no Maracanã. 

É?

É. Me avisaram agora pelo celular. Afastaram aquele engenheiro. A paz voltou na minha vida. Amanhã começo uma nova etapa no meu trabalho!

Que bom, amor, fico feliz por você. Pois então vou lhe dar outra notícia: o médico marcou a cesariana para amanhã.

Vai dar tudo certo.

Vai sim.




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