VEJO
(by Ceci Lohmann)
VEJO-a de longe, estava sentada num
café, mostrava-se distante e alheia ao seu entorno. Sua aparência franzina era
a mesma; sempre fora muito magra, o que dava a sensação de ser frágil.
Mas, apesar disso, tentava superar os obstáculos da sua vida, que
não foi fácil. Quando a conheci, terminara a faculdade com muito sacrifício. Vou me aproximando, o pouco brilho no olhar, o sorriso contido, destoavam
dos traços daquela moça jovem, alegre e sonhadora que conheci.
Primeiro o abraço forte, saudoso, encontro do passado. Depois, nos sentamos,
e pedimos ao garçom um chá. Noto-a mais calada: a fala é lenta, com um tom de
desesperança. Há tantas coisas a contar, fomos muito próximas, mas depois nos
afastamos, seguindo nossos rumos, nossos sonhos. Algo deve ter ocorrido para
estar agora tão diferente.
Desde criança tivera um sonho, o de reencontrar seu pai. Dele, apenas
guardara leves lembranças remotas especialmente quando foi visitá-lo por
ocasião de uma doença. Eram momentos de grande alvoroço já que alguns parentes
não aceitavam sua presença. A pobre menina ficava no meio das discussões. O pai
queria levá-la para seu convívio, criá-la em melhores condições, mas a
família materna, muito pobre e limitada, não aceitava e ainda o tratavam mal. Em
sua memória, fatos como esses eram doloridos. Sofria, pois amava os pais, e não
compreendia porque não lhe era permitida essa aproximação. Seu pai nunca fez
objeção alguma ao seu convívio com a mãe.
Ela nascera num local distante da cidade do pai. A mãe era de uma posição
social mais humilde, tivera um rápido relacionamento amoroso e, ao
perceber a gravidez, mudou-se sem nada comunicá-lo. Suas irmãs a trouxeram para
outro estado. Já trazia no nascimento a marca da falta, da ausência, que
tentara mais tarde reparar. Mesmo em outros momentos, com exceção daquele em
que ficara gravemente doente e seu pai foi comunicado e veio socorrê-la apesar
dos conflitos, ficara impedida de ter qualquer contato com ele e toda família
paterna. Foram poucos encontros e sua imagem nublada impedia de visualizá-lo
mais nitidamente. O pai soubera de seu nascimento e havia tentado romper estas
barreiras em vários momentos. Ela era ainda muito pequena e só lhe restavam
sombras nas recordações desses fatos. Para atenuar seu sofrimento, tentou
esquecê-lo, esvaziar da memória seu amor por ele. Eram artifícios que nem
sempre conseguia manter.
Cresceu e, já adulta, fez muitas amizades, resplandecia alegria. Mas
mantinha o sonho de um dia resgatá-lo e de preencher este vazio doloroso,
sentimentos que ela vivia ocultamente, evitando causar mágoas à sua mãe.
Nunca aceitou essa atitude da mãe de excluí-lo. Ao mesmo tempo se sentia
devedora dos cuidados que ela lhe dedicara. Esse desejo lhe acompanhava
fortalecendo-a em seus propósitos.
Numa tarde outonal, a mãe, já debilitada, quis falar-lhe do passado. Sentia
remorsos pelo fato de tê-la impedido de uma aproximação com o pai, buscando
morar em locais que ele desconhecesse, dificultando esse encontro. Confessa-lhe
que temia perdê-la - ela mesma havia sido deixada pela mãe a quem nunca mais
viu e foi criada por parentes -, por isso precisava estar como filha perto para
substituir seu próprio abandono.
Preocupada, resolveu revelar tudo que sabia sobre ele, a cidade onde morava,
sua profissão, vida pessoal...era casado, tinha filhos (portanto seus irmãos), possuía
uma ótima condição social. Pede-lhe perdão pelo mal que lhe causara e implora
que fosse procurá-lo.
Confusa e emocionada, percebe que agora poderia viver seu sonho, preencher
este anonimato que tanto a afligia. Sabia que seria bem recebida. Mas, fica
conflituada por já não saber sobre seu desejo, teme lidar com frustrações que
possam ocorrer nesse reencontro.
Procura uma amiga muito fiel que se propõe a acompanhá-la. Elas planejam uma
forma de, inicialmente, realizar esse contato sem o pai perceber. Usariam um
artifício já que trabalhavam num ramo semelhante ao de seu pai, e iriam se
apresentar como interessadas em conhecer sua empresa com o intuito de buscar
trabalho e moradia. Era uma cidade que precisava de profissionais
especializados e o curriculum de ambas permitia isso.
Ela está lá, frente a um homem bem velho, cabelos brancos, pele morena como
a sua, olhar cansado. Ela teme chorar copiosamente e revelar seu segredo. Defrontam-se
silenciosamente pai e filha. Treme e teme desmaiar. Ele, andando vagarosamente
com o auxílio de uma bengala, mostra-se sorridente e as recebe de forma
acolhedora. Afinal, vinham de tão longe... Como ela, também era franzino. Era
realmente seu pai, este pai que só existira em seus sonhos.
Ficam juntos algum tempo, conversam, ele oferece-lhes um cafezinho e tenta
manter uma conversa amena. Elas ainda iam ficar alguns dias e ele as convida
para ir à sua casa jantar e conhecer sua família - naquela cidade havia
esse hábito, era uma maneira de acolher os estranhos.
No auge deste momento ela alega não se sentir bem e se recolhe ao seu hotel.
Ele, preocupado, deseja ajudá-la. Mas ela recua e despede-se. Retorna ao
hotel, tropeçando pelas calçadas. No interior do seu quarto, desaba na cama, e
chora copiosamente, como jamais fizera.Transbordam todos os sentimentos que lhe
foram negados e reprimidos todos esses anos. Queria gritar, dizer-lhe que era
sua filha, mas preferiu fugir. No dia seguinte, envia-lhe um bilhete de
agradecimento e desaparece num ônibus qualquer rumo à sua cidade. Prefere
desistir e retornar ao conforto de uma situação já conhecida, do que suportar o
sofrimento e o momento da revelação; já não seria possível negar a falta,
ocultar o ressentimento, enfrentar o abismo dessa realidade, um pai que já não
era mais seu, não mais aquele com quem sonhara. A tristeza e o escuro da dor
psíquica vão num crescendo anunciando a agonia da desilusão.
Nunca mais foi a mesma; o rosto sorridente e esperançoso transformara-se
numa face inerte, olhar sem crenças; restava-lhe a dor de não mais
sonhar, não mais viver, apenas caminhar.
Soubera que o pai logo depois adoecera e morrera e ela jamais se perdoou.
Agora, quando a reencontro, contando-me sua estória, penso nos anos que se
passaram, na sua tristeza, no sonho não vivido, na inutilidade das coisas. Sonhos
que se perderam, como sua vida.
Ceci, querida, que prazer ler seu belo texto. Profundo, acolhedor, didático até. A psicóloga mandou ver e mandou muito bem. Adorei especialmente este trecho: "...já não seria possível negar a falta, ocultar o ressentimento, enfrentar o abismo dessa realidade, um pai que já não era mais seu, não mais aquele com quem sonhara. A tristeza e o escuro da dor psíquica vão num crescendo anunciando a agonia da desilusão."
ResponderExcluirParabéns!
Rita..obrigada pela força..demorei mas enviei..tb gostei de ve-lo postado..bjs ceci
ResponderExcluirCeci, gostei muito.Obrigada.
ResponderExcluirEis o que acontece a quem não tem coragem de lutar por seus sonhos, quem os deixa entregues à vida, aos outros. E que mãe!...
A frase final ficou excelente mesmo!Adoro bons fechamentos.
Elô
Esse pesadelo, que não sonhamos, desta terceira etapa da presente série temática mostra mais uma vez que não podemos nos fiar na natureza humana. Que conto dolorosamente humano!
ResponderExcluirDe fazer passar mal, sonhos trágicos assim.
Ceci, assim acabaremos todos precisando de nos refestelar em um divã seguro, em busca de soluções que previnam-nos de realidades indesejadas como essa que você narrou. Fait attention!
Quantos pensamentos equivocados das personagens, quantos sentimentos contrafeitos!
Deus me livre de um futuro assim! Me angustia saber que tantos maus pensamentos podem nascer no coração.
Evandro...este mundo mágico e misterioso em que voce penetra,o universo,a pesquisa por outros "mundos",a busca do tempo....voce jamais sofrerá de maus pensamentos,pois a coragem em explorar o extranho,adentrar no"perdido" é condição primordial para nos salvarmos...vc penetra no macro e eu no micro,e ambos buscamos compreender o oculto..
ExcluirParabéns, Ceci!
ResponderExcluirBonito e comovente conto. Tantos sonhos perdidos e não vividos!
Beijos.
Elenir
bjs e obrigada pela força..Elenir
ExcluirCeci querida
ResponderExcluirQuantas histórias, romances, crônicas, poesias e dramas vivenciamos ao acolher dores através da escuta.
Sua escrita fez-me lembrar dos versos de Henrique Chaudon, um escritor de Niterói:
"As feridas não sangram para fora.
Elas escorrem para dentro,
corroem a alma.
E nada faz secar
as feridas mal curadas
senão abri-las novamente
para que esvaziem
afinal."
Nestes casos, o remédio é a expressão. Se for insuportável pela palavra, que seja pela escrita. Uma escrita para si mesma.
Gratidão por sua presença e sensibilidade.
Gratidão pela sua amizade e sinceridade..
ExcluirParabéns pelo texto, bem escrito, sensível e real. Mais uma vez a vida e a Literatura se igualam. Eu vivi a situação do texto. Numa situação idêntica a do texto, eu achei o pai perdido de um amigo e, ainda idêntico ao texto, a coisa não acabou muito bem, não teve o final feliz que seria tão bom.
ResponderExcluirUm grande abraço na autora.
Carlos Rosa.
obrigada Carlos..vindo de vc tal elogio,´so me incentiva para continuar neste caminho
ExcluirGostaria de ler uma entrevista com Ceci. Ela concilia sabedoria e otimismo e sempre se expressa de forma bastante esclarecedora. Gosto de você, Ceci. Você é uma pessoa do bem. Suas dicas de leituras também são ótimas. Você deve ter muitos admiradores no clube de leitura.Mostre mais a sua luz que isso fará muito bem a todos.
ResponderExcluirCaro "anônimo;....Obrigada..mas fiquei sem saber quem é voce...
ExcluirBrilhante, adorei. Super atual. Eu colocaria como tema musical hier encore.
ResponderExcluirOPA!Logo me lembrei de Aznavour!!UAU!
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