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16 de maio de 2013

Da série temática Sonhos que não sonhamos (3)



VEJO
(by Ceci Lohmann)

VEJO-a de longe, estava sentada num café, mostrava-se distante e alheia ao seu entorno. Sua aparência franzina era a mesma; sempre fora muito magra, o que dava a sensação de ser frágil. Mas, apesar disso,  tentava superar os obstáculos da sua vida, que não foi fácil. Quando a conheci, terminara a faculdade com muito sacrifício. Vou me aproximando, o pouco brilho no olhar, o sorriso contido, destoavam dos traços daquela moça jovem, alegre e sonhadora que conheci.


Primeiro o abraço forte, saudoso, encontro do passado. Depois, nos sentamos, e pedimos ao garçom um chá. Noto-a mais calada: a fala é lenta, com um tom de desesperança. Há tantas coisas a contar, fomos muito próximas, mas depois nos afastamos, seguindo nossos rumos, nossos sonhos. Algo deve ter ocorrido para estar agora tão diferente.

Desde criança tivera um sonho, o de reencontrar seu pai. Dele, apenas guardara leves lembranças remotas especialmente quando foi visitá-lo por ocasião de uma doença. Eram momentos de grande alvoroço já que alguns parentes não aceitavam sua presença. A pobre menina ficava no meio das discussões. O pai queria levá-la para seu convívio,  criá-la em melhores condições, mas a família materna, muito pobre e limitada, não aceitava e ainda o tratavam mal. Em sua memória, fatos como esses eram doloridos. Sofria, pois amava os pais, e não compreendia porque não lhe era permitida essa aproximação. Seu pai nunca fez objeção alguma ao seu convívio com a mãe.

Ela nascera num local distante da cidade do pai. A mãe era de uma posição social mais humilde, tivera um rápido relacionamento amoroso e, ao perceber a gravidez, mudou-se sem nada comunicá-lo. Suas irmãs a trouxeram para outro estado. Já trazia no nascimento a marca da falta, da ausência, que tentara mais tarde reparar. Mesmo em outros momentos, com exceção daquele em que ficara gravemente doente e seu pai foi comunicado e veio socorrê-la apesar dos conflitos, ficara impedida de ter qualquer contato com ele e toda família paterna. Foram poucos encontros e sua imagem nublada impedia de visualizá-lo mais nitidamente. O pai soubera de seu nascimento e havia tentado romper estas barreiras em vários momentos. Ela era ainda muito pequena e só lhe restavam sombras nas recordações desses fatos. Para atenuar seu sofrimento, tentou esquecê-lo, esvaziar da memória seu amor por ele. Eram artifícios que nem sempre conseguia manter.

Cresceu e, já adulta, fez muitas amizades, resplandecia alegria. Mas mantinha o sonho de um dia resgatá-lo e de preencher este vazio doloroso, sentimentos que  ela vivia ocultamente, evitando causar mágoas à sua mãe. Nunca aceitou essa atitude da mãe de excluí-lo. Ao mesmo tempo se sentia devedora dos cuidados que ela lhe dedicara. Esse desejo lhe acompanhava fortalecendo-a em seus propósitos.

Numa tarde outonal, a mãe, já debilitada, quis falar-lhe do passado. Sentia remorsos pelo fato de tê-la impedido de uma aproximação com o pai, buscando morar em locais que ele desconhecesse, dificultando esse encontro. Confessa-lhe que temia perdê-la - ela mesma havia sido deixada pela mãe a quem nunca mais viu e foi criada por parentes -, por isso precisava estar como filha perto para substituir seu  próprio abandono.

Preocupada, resolveu revelar tudo que sabia sobre ele, a cidade onde morava, sua profissão, vida pessoal...era casado, tinha filhos (portanto seus irmãos), possuía uma ótima condição social. Pede-lhe perdão pelo mal que lhe causara e implora que fosse procurá-lo.

Confusa e emocionada, percebe que agora poderia viver seu sonho, preencher este anonimato que tanto a afligia. Sabia que seria bem recebida. Mas, fica conflituada por já não saber sobre seu desejo, teme lidar com frustrações que possam ocorrer nesse reencontro.

Procura uma amiga muito fiel que se propõe a acompanhá-la. Elas planejam uma forma de, inicialmente, realizar esse contato sem o pai perceber. Usariam um artifício já que trabalhavam num ramo semelhante ao de seu pai, e iriam se apresentar como interessadas em conhecer sua empresa com o intuito de buscar trabalho e moradia. Era uma cidade que precisava de profissionais especializados e o curriculum de ambas permitia isso.

Ela está lá, frente a um homem bem velho, cabelos brancos, pele morena como a sua, olhar cansado. Ela teme chorar copiosamente e revelar seu segredo. Defrontam-se silenciosamente pai e filha. Treme e teme desmaiar. Ele, andando vagarosamente com o auxílio de uma bengala, mostra-se sorridente e as recebe de forma acolhedora. Afinal, vinham de tão longe... Como ela, também era franzino. Era realmente seu pai, este pai que só existira em seus sonhos.

Ficam juntos algum tempo, conversam, ele oferece-lhes um cafezinho e tenta manter uma conversa amena. Elas ainda iam ficar alguns dias e ele as convida para ir à sua casa jantar e conhecer sua família - naquela cidade havia esse  hábito, era uma maneira de acolher os estranhos.

No auge deste momento ela alega não se sentir bem e se recolhe ao seu hotel. Ele, preocupado, deseja ajudá-la. Mas ela recua e despede-se. Retorna ao hotel, tropeçando pelas calçadas. No interior do seu quarto, desaba na cama, e chora copiosamente, como jamais fizera.Transbordam todos os sentimentos que lhe foram negados e reprimidos todos esses anos. Queria gritar, dizer-lhe que era sua filha, mas preferiu fugir. No dia seguinte, envia-lhe um bilhete de agradecimento e desaparece num ônibus qualquer rumo à sua cidade. Prefere desistir e retornar ao conforto de uma situação já conhecida, do que suportar o sofrimento e o momento da revelação; já não seria possível negar a falta, ocultar o ressentimento, enfrentar o abismo dessa realidade, um pai que já não era mais seu, não mais aquele com quem sonhara. A tristeza e o escuro da dor psíquica vão num crescendo anunciando a agonia da desilusão.

Nunca mais foi a mesma; o rosto sorridente e esperançoso transformara-se numa face inerte, olhar sem  crenças; restava-lhe a dor de não mais sonhar, não mais viver, apenas caminhar.

Soubera que o pai logo depois adoecera e morrera e ela jamais se perdoou.

Agora, quando a reencontro, contando-me sua estória, penso nos anos que se passaram, na sua tristeza, no sonho não vivido, na inutilidade das coisas. Sonhos que se perderam, como sua vida.




15 comentários:

  1. Ceci, querida, que prazer ler seu belo texto. Profundo, acolhedor, didático até. A psicóloga mandou ver e mandou muito bem. Adorei especialmente este trecho: "...já não seria possível negar a falta, ocultar o ressentimento, enfrentar o abismo dessa realidade, um pai que já não era mais seu, não mais aquele com quem sonhara. A tristeza e o escuro da dor psíquica vão num crescendo anunciando a agonia da desilusão."

    Parabéns!

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  2. Rita..obrigada pela força..demorei mas enviei..tb gostei de ve-lo postado..bjs ceci

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  3. Ceci, gostei muito.Obrigada.
    Eis o que acontece a quem não tem coragem de lutar por seus sonhos, quem os deixa entregues à vida, aos outros. E que mãe!...
    A frase final ficou excelente mesmo!Adoro bons fechamentos.
    Elô

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  4. Esse pesadelo, que não sonhamos, desta terceira etapa da presente série temática mostra mais uma vez que não podemos nos fiar na natureza humana. Que conto dolorosamente humano!

    De fazer passar mal, sonhos trágicos assim.

    Ceci, assim acabaremos todos precisando de nos refestelar em um divã seguro, em busca de soluções que previnam-nos de realidades indesejadas como essa que você narrou. Fait attention!

    Quantos pensamentos equivocados das personagens, quantos sentimentos contrafeitos!

    Deus me livre de um futuro assim! Me angustia saber que tantos maus pensamentos podem nascer no coração.

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    1. Evandro...este mundo mágico e misterioso em que voce penetra,o universo,a pesquisa por outros "mundos",a busca do tempo....voce jamais sofrerá de maus pensamentos,pois a coragem em explorar o extranho,adentrar no"perdido" é condição primordial para nos salvarmos...vc penetra no macro e eu no micro,e ambos buscamos compreender o oculto..

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  5. Parabéns, Ceci!
    Bonito e comovente conto. Tantos sonhos perdidos e não vividos!
    Beijos.
    Elenir

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  6. Ceci querida

    Quantas histórias, romances, crônicas, poesias e dramas vivenciamos ao acolher dores através da escuta.
    Sua escrita fez-me lembrar dos versos de Henrique Chaudon, um escritor de Niterói:
    "As feridas não sangram para fora.
    Elas escorrem para dentro,
    corroem a alma.
    E nada faz secar
    as feridas mal curadas
    senão abri-las novamente
    para que esvaziem
    afinal."
    Nestes casos, o remédio é a expressão. Se for insuportável pela palavra, que seja pela escrita. Uma escrita para si mesma.
    Gratidão por sua presença e sensibilidade.

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  7. Parabéns pelo texto, bem escrito, sensível e real. Mais uma vez a vida e a Literatura se igualam. Eu vivi a situação do texto. Numa situação idêntica a do texto, eu achei o pai perdido de um amigo e, ainda idêntico ao texto, a coisa não acabou muito bem, não teve o final feliz que seria tão bom.
    Um grande abraço na autora.
    Carlos Rosa.

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    1. obrigada Carlos..vindo de vc tal elogio,´so me incentiva para continuar neste caminho

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  8. Gostaria de ler uma entrevista com Ceci. Ela concilia sabedoria e otimismo e sempre se expressa de forma bastante esclarecedora. Gosto de você, Ceci. Você é uma pessoa do bem. Suas dicas de leituras também são ótimas. Você deve ter muitos admiradores no clube de leitura.Mostre mais a sua luz que isso fará muito bem a todos.

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    1. Caro "anônimo;....Obrigada..mas fiquei sem saber quem é voce...

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  9. Brilhante, adorei. Super atual. Eu colocaria como tema musical hier encore.

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