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7 de abril de 2013

Clube do Conto - O Barqueiro: Hélio José Lima Penna



            O menino deixou o barco para explorar mais uma das casas inundadas com a cheia do rio Boca Grande.  Moisés, o barqueiro, o aguardava esperançoso de encontrar algo de mais valor.



        O rio transbordou no início da manhã, depois das violentas chuvas. A fúria da água partiu o dique e seguiu feroz, carregando árvores, gente, animais, móveis, lama e morte para o centro de Matozinho, o pequeno município.  Os moradores que escaparam da enxurrada abandonaram as suas casas, carregando o que podiam.

            O menino retornou ao barco com as mãos vazias. Continuaram a viagem pela rua principal, agora um braço do rio. Um televisor vinha boiando. Moisés movimentou depressa o remo para agarrar o aparelho. Na sua mercearia havia um idêntico, no qual ele e os fregueses assistiram as imagens da enchente no município vizinho, no ano anterior. “Taquaral tá parecendo um cemitério. O povinho sem sorte. É lugar cheio de pecados”, ele dissera para a freguesia, fixa na televisão que o rio roubaria no ano seguinte.

            Passavam agora pela igreja. Moisés acreditava que qualquer igreja guardava preciosidades. Mas o menino, devoto de São Benedito, negou-se a invadir a morada do santo. Diante da recusa, o barqueiro saltou do barco, muito aborrecido. Esforçou-se, mas não sabia nadar. Voltou ofegante. O moleque ria dele.  Teve ódio do garoto. Maldito! Imprestável! Mergulhava no Boca Grande e não prestava para pular naquela aguinha por causa do santo. Filho de seu ninguém! Vivia ao léu nas ruas de Matozinho. Aos cuidados de um e de outro. Nunca que voltasse a sua mercearia. Nunca que lhe pedisse um vintém. Pedisse a São Benedito, o santo preto que não impediu que a água tomasse a igreja dele.



Mais à frente, surgiu o prédio da Prefeitura, que ficava no ponto mais alto da cidade e serviu de abrigo à população. Antes, foi preciso enfrentar os seguranças do prefeito, numa batalha sem precedentes na história de Matozinho. Mulheres e homens, armados de paus, pedras, cachorros, dentes, facas e fúria atacaram os paus-mandados e tomaram o edifício. E ali acamparam com suas crianças e seus poucos pertences.

 Ao avistar o prédio municipal, Moisés lembrou-se, envaidecido, do dia em que o prefeito o convidou para representar o comércio na inauguração do dique. Foi uma solenidade com feriado, desfile dos funcionários e dos estudantes, banda de música, fogos, discursos e a promessa de que o helicóptero do governador pousaria no dique. A autoridade municipal acreditava que a presença do governador calaria os que se opunham à obra. Mas o piloto não conseguiu assentar a nave na construção.  O prefeito garantiu, no entanto, que a barragem era segura e que ele mesmo e a família fariam um passeio no topo da construção, para calar os opositores contrários ao progresso de Matozinho. O menino também se recordou da festa. Seus olhos se alegraram com a centena de balões que subiram pro céu, feito pipas coloridas. Ficou impressionado com o tamanho e a beleza do helicóptero que, ao alcance das mãos, sobrevoou várias vezes a cidade e fez acrobacias para descer no dique.



            O barco movia-se. Adiante avistaram a padaria. Uma parte estava sob as águas. Moisés pensou que ali poderia haver um cofre. O menino nadou e foi espiar pelo basculante da loja:
            - Não dá pra ver nada não.
            - Entra ai, homem... pelo basculante.
            - Não dá pra entrar aqui não, Seu Moisés... tá cheio de água.
            - Entra ai, garoto, deixa de besteira!
            - Tá escuro...
            - Entra!
            - Não!
 O barqueiro, enraivecido, move a canoa. O menino o chama:
            - Seu Moisés, Seu Moisés...
            O barqueiro segue remando a sua crueldade.

             
           

19 comentários:

  1. Hélio, seus contos têm a marca da denúncia das atrocidades que tantos ainda sofrem e que tantos outros banalizam, fazem pouco ou nada. Nos chamam à realidade, à luta, à vida. Você é um verdadeiro ativista literário. Gosto muito de ler você.

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    1. Agradeço, Rita.
      Você tem colaborado com as minhas "escrevivências" e me abriu as janelas do Clube Leitura.
      Hélio Penna.

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  2. Excelente! Parabéns ao autor pelo conto e à Rita por garimpar essas preciosidades para o CLIc!

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    1. Obrigado.
      São palavras que estimulam a continuar aprendendo a escrever. Certo de que sou fruto de um meio artístico que envolve muitos outros contistas e compositores.
      Hélio Penna.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Bonito conto Hélio! Você tem um jeito manso de descrever a crueldade, não só a do barqueiro, mas a própria crueldade de uma vida que sujeita as pessoas, sobretudo as mais pobres, a conviver com enchentes e desgraças que de "naturais" não têm nada... Parabéns.

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    1. É o "jeito manso" do capoeirista, do mandingueiro...
      Obrigado.
      Hélio Penna.

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    2. voce me inspira a tambem me aventurar pelas aguas dos contos..vc soube retratar de forma singela situaçoes do tragico da vida...Um abraço...ceci

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    3. Agradeço. E se "inspiro" e por beber na fonte de outros escritores e escritoras. Mergulhe nessas águas: o susto é o conto.
      Hélio Penna.

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    1. O leitor é o escritor, do outro lado.
      Agradeço.

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  6. Tive o prazer de ler o conto do Hélio. Bem escrito, mostrando a faceta muito humana do barqueiro e do garoto. Já conhecia a escrita do Hélio, bom de ler. Parabéns pelo conto.
    Carlos Rosa

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    1. Pois é Carlos, eu agradeço. Mas saiba que estou profundamente mergulhado na tua obra Histórias da Noite... E a tua escrita sacode-nos, amassa, enverga... E quando nos deixa, exauridos, já não somos os mesmos... Pois descobrimos que "Somos um mundo, não temos conhecimento sobre até onde se estendem nossos horizontes."
      Hélio Penna.

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  7. Pai, parabéns por mais essa vitória e esse presente para nós, leitores!
    O conto é lindo, real, triste, emocionante.
    Continue sempre nos emocionando!
    Beijos!!!

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    1. Sim, é mesmo uma "vitória". A publicação possibilita o encontro com o leitor. Sem este, não há escrita. E sem escrita, eu não existo.
      Obrigado.
      Hélio Penna.

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  8. Parabéns pelo conto, tio hélio.
    Marcelo.

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    1. Agradeço, Marcelo.
      Agradeço, ainda, pela forma carinhosa como sou tratado pelos jovens, como você.
      Hélio Penna.

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  9. Hélio, seu conto tem a marca dos que sabem o que dizem.Moisés o que foi salvo das águas, que trouxe as novas leis, que conduziu um povo , dá seu nome a alguém cheio de raiva, que só quer retirar das águas coisas materiais e transgredir as leis. Gostei da oposição.Seu conto na verdade, parece trecho de algo maior(quem sabe um romance?).
    Parabéns!
    Elô

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    1. Obrigado.
      Gostei muito da observação do nome Moisés. A escolha foi intencional.
      Você está certa: o que motivou esta narrativa poderia, sim, tornar-se um romance.Quando eu tiver mais tempo para pesquisar, me dedicarei a esse gênero. É um excitante desafio.
      Hélio Penna.

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