O menino deixou o barco para
explorar mais uma das casas inundadas com a cheia do rio Boca Grande. Moisés, o barqueiro, o aguardava esperançoso
de encontrar algo de mais valor.
O rio transbordou
no início da manhã, depois das violentas chuvas. A fúria da água partiu o dique
e seguiu feroz, carregando árvores, gente, animais, móveis, lama e morte para o
centro de Matozinho, o pequeno município.
Os moradores que escaparam da enxurrada abandonaram as suas casas, carregando
o que podiam.
O
menino retornou ao barco com as mãos vazias. Continuaram a viagem pela rua
principal, agora um braço do rio. Um televisor vinha boiando. Moisés movimentou
depressa o remo para agarrar o aparelho. Na sua mercearia havia um idêntico, no
qual ele e os fregueses assistiram as imagens da enchente no município vizinho,
no ano anterior. “Taquaral tá parecendo um cemitério. O povinho sem sorte. É
lugar cheio de pecados”, ele dissera para a freguesia, fixa na televisão que o
rio roubaria no ano seguinte.
Passavam agora pela igreja. Moisés acreditava que qualquer igreja
guardava preciosidades. Mas o menino, devoto de São Benedito, negou-se a invadir a morada do santo. Diante da
recusa, o barqueiro saltou do barco, muito aborrecido. Esforçou-se, mas não
sabia nadar. Voltou ofegante. O moleque ria dele. Teve ódio do garoto. Maldito! Imprestável!
Mergulhava no Boca Grande e não prestava para pular naquela aguinha por causa
do santo. Filho de seu ninguém! Vivia ao léu nas ruas de Matozinho. Aos
cuidados de um e de outro. Nunca que voltasse a sua mercearia. Nunca que lhe
pedisse um vintém. Pedisse a São Benedito, o santo preto que não impediu que a
água tomasse a igreja dele.
Mais à frente,
surgiu o prédio da Prefeitura, que ficava no ponto mais alto da cidade e serviu
de abrigo à população. Antes, foi preciso enfrentar os seguranças do prefeito,
numa batalha sem precedentes na história de Matozinho. Mulheres e homens,
armados de paus, pedras, cachorros, dentes, facas e fúria atacaram os
paus-mandados e tomaram o edifício. E ali acamparam com suas crianças e seus
poucos pertences.
Ao avistar o prédio municipal, Moisés
lembrou-se, envaidecido, do dia em que o prefeito o convidou para representar o
comércio na inauguração do dique. Foi uma solenidade com feriado, desfile dos
funcionários e dos estudantes, banda de música, fogos, discursos e a promessa
de que o helicóptero do governador pousaria no dique. A autoridade municipal acreditava que a presença do governador
calaria os que se opunham à obra. Mas o piloto não conseguiu assentar a nave na
construção. O prefeito garantiu, no
entanto, que a barragem era segura e que ele mesmo e a família fariam um
passeio no topo da construção, para calar os opositores contrários ao progresso
de Matozinho. O menino também se recordou da festa. Seus olhos se alegraram com
a centena de balões que subiram pro céu, feito pipas coloridas. Ficou
impressionado com o tamanho e a beleza do helicóptero que, ao alcance das mãos,
sobrevoou várias vezes a cidade e fez acrobacias para descer no dique.
O barco movia-se. Adiante avistaram
a padaria. Uma parte estava sob as águas. Moisés pensou que ali poderia haver
um cofre. O menino nadou e foi espiar pelo basculante da loja:
- Não dá pra ver nada não.
- Entra ai, homem... pelo
basculante.
- Não dá pra entrar aqui não, Seu
Moisés... tá cheio de água.
- Entra ai, garoto, deixa de
besteira!
- Tá escuro...
- Entra!
- Não!
O barqueiro, enraivecido, move a canoa. O
menino o chama:
- Seu Moisés, Seu Moisés...
O barqueiro segue remando a sua
crueldade.
Hélio, seus contos têm a marca da denúncia das atrocidades que tantos ainda sofrem e que tantos outros banalizam, fazem pouco ou nada. Nos chamam à realidade, à luta, à vida. Você é um verdadeiro ativista literário. Gosto muito de ler você.
ResponderExcluirAgradeço, Rita.
ExcluirVocê tem colaborado com as minhas "escrevivências" e me abriu as janelas do Clube Leitura.
Hélio Penna.
Excelente! Parabéns ao autor pelo conto e à Rita por garimpar essas preciosidades para o CLIc!
ResponderExcluirObrigado.
ExcluirSão palavras que estimulam a continuar aprendendo a escrever. Certo de que sou fruto de um meio artístico que envolve muitos outros contistas e compositores.
Hélio Penna.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBonito conto Hélio! Você tem um jeito manso de descrever a crueldade, não só a do barqueiro, mas a própria crueldade de uma vida que sujeita as pessoas, sobretudo as mais pobres, a conviver com enchentes e desgraças que de "naturais" não têm nada... Parabéns.
ResponderExcluirÉ o "jeito manso" do capoeirista, do mandingueiro...
ExcluirObrigado.
Hélio Penna.
voce me inspira a tambem me aventurar pelas aguas dos contos..vc soube retratar de forma singela situaçoes do tragico da vida...Um abraço...ceci
ExcluirAgradeço. E se "inspiro" e por beber na fonte de outros escritores e escritoras. Mergulhe nessas águas: o susto é o conto.
ExcluirHélio Penna.
Gostei, também!
ResponderExcluirO leitor é o escritor, do outro lado.
ExcluirAgradeço.
Tive o prazer de ler o conto do Hélio. Bem escrito, mostrando a faceta muito humana do barqueiro e do garoto. Já conhecia a escrita do Hélio, bom de ler. Parabéns pelo conto.
ResponderExcluirCarlos Rosa
Pois é Carlos, eu agradeço. Mas saiba que estou profundamente mergulhado na tua obra Histórias da Noite... E a tua escrita sacode-nos, amassa, enverga... E quando nos deixa, exauridos, já não somos os mesmos... Pois descobrimos que "Somos um mundo, não temos conhecimento sobre até onde se estendem nossos horizontes."
ExcluirHélio Penna.
Pai, parabéns por mais essa vitória e esse presente para nós, leitores!
ResponderExcluirO conto é lindo, real, triste, emocionante.
Continue sempre nos emocionando!
Beijos!!!
Sim, é mesmo uma "vitória". A publicação possibilita o encontro com o leitor. Sem este, não há escrita. E sem escrita, eu não existo.
ExcluirObrigado.
Hélio Penna.
Parabéns pelo conto, tio hélio.
ResponderExcluirMarcelo.
Agradeço, Marcelo.
ExcluirAgradeço, ainda, pela forma carinhosa como sou tratado pelos jovens, como você.
Hélio Penna.
Hélio, seu conto tem a marca dos que sabem o que dizem.Moisés o que foi salvo das águas, que trouxe as novas leis, que conduziu um povo , dá seu nome a alguém cheio de raiva, que só quer retirar das águas coisas materiais e transgredir as leis. Gostei da oposição.Seu conto na verdade, parece trecho de algo maior(quem sabe um romance?).
ResponderExcluirParabéns!
Elô
Obrigado.
ExcluirGostei muito da observação do nome Moisés. A escolha foi intencional.
Você está certa: o que motivou esta narrativa poderia, sim, tornar-se um romance.Quando eu tiver mais tempo para pesquisar, me dedicarei a esse gênero. É um excitante desafio.
Hélio Penna.