BANHO DE LEMBRANÇAS
Rita Magnago
Uma banheira de plástico, rosa, no chão, perto de dois pequenos tanques
de cimento onde, no do canto, minha mãe lavava nossa roupa. É a coisa mais
antiga que me lembro da infância. Eu ficava sentadinha dentro da banheira,
remexendo roupas sujas, enquanto minha mãe seguia esfregando, torcendo e
falando com a vizinha, que também lavava, no tanque da ponta, ao lado do seu.
Morávamos em uma minúscula casa de uma pequena vila em Inhaúma, subúrbio
do Rio de Janeiro, onde os tanques, dois a dois, ficavam dispostos para que se
dividisse também o asseio. Quase tudo era público. O espaço entre as casas,
mínimo. Quer dizer, não havia, duas casas contíguas e em frente a outras duas,
à distância de um passo largo de homem. Porta contra janela. Janela contra
porta. Intimidade só se sussurrássemos o dia inteiro. Eu sabia de você, você de
mim. Seu programa de tevê predileto, suas músicas, suas brigas com a família,
quando você fazia amor ou tinha uma febre.
Nessa época, meu pai, que trabalhava na Rede Ferroviária Federal, gostava
de beber e estava se viciando no jogo, tanto no de bicho e de corrida de
cavalo, quanto no de pôquer. Como quase toda sua geração, era muito machista.
Em casa, a primeira e a última palavras eram dele e, se bobear, também as do
meio. Minha mãe, também como a maioria das donas de casa, tentava o que podia
para fazer as coisas do seu jeito, mas era muito difícil.
Quando eu tinha uns sete anos, as coisas começaram a piorar muito. Um dia
voltei da escola e não tinha mais tevê; no outro, meu pai ficou sem ternos e
relógios – e olha que ele era vaidoso – e a comida estava racionada. Não
entendia bem aquilo, mas ouvia, assim como os vizinhos, as discussões da minha
mãe dizendo que não tinha dinheiro para a feira e que meu pai não podia jogar
com seu salário. Certa vez, na minúscula cozinha, peguei minha mãe escondendo
dinheiro dentro de um saco plástico, no pote de café. Ela fez sinal de silêncio
com o dedo indicador sobre a boca.
Depois daquela ocasião, vi minha mãe escondendo dinheiro na minha gaveta
de roupa de dormir, no congelador da geladeira e até dentro da descarga
sanitária, um modelo antigo em que saía a tampa e tinha um gancho pendurado com
uma boa distância separando a boia da água. Minha mãe prendeu um saquinho com
notas ali. Tudo em vão, meu pai parecia que tinha faro canino, achava tudo.
Achava e perdia.
A vida seguia assim, pobre, simples, mas sobretudo temerária, era muito
medo de não se ter o necessário para o dia seguinte. Minha mãe passou a aceitar
ajuda da minha avó, mãe do meu pai – que conhecia bem os vícios do filho – para
a feira e os mantimentos que faltassem. Minha avó era discreta, passava lá com
duas sacolas cheias, deixava tudo, dizendo que tinha umas frutas e legumes que
as crianças gostavam, ela comprava para mim e para o meu irmão. Mas os vizinhos
todos viam e sabiam e minha mãe se envergonhava. Sorte era que, ali, a vergonha
também era dividida.
A vizinha do lado estava com o casamento a perigo, porque o marido tinha
amante e quantas madrugadas a gente acordava com ela berrando para saber onde
ele estava, quem era a piranha que estava tirando ele de casa e esse tipo de
diálogo saudável e bem indicado para as crianças ouvirem.
A vizinha de frente tinha uma irmã meio louca, a Carminha. Toda vez que
ela ia à casa da irmã tomar conta do sobrinho, colocava na vitrola o disco da
Betânia no volume máximo cantando “Dia ímpar tem chocolate, dia par eu vivo de
brisa, dia útil ele me bate, dia santo, ele me alisa”. Era considerada bisca
fácil na rua.
Só escapava dos mexericos a vizinha ao lado da casa de frente à nossa, que
na verdade era minha tia, mas ela colocava dois tapumes bem altos, um na janela
da sala, outro na janela do quarto, onde só sobrava espaço para entrar um arzinho.
Não ouvia música e deviam cochichar lá dentro, ela, meu tio e minhas duas
primas, porque a gente não ouvia nada. Ela era a antipática da vila, só
cumprimentava se encontrasse alguém no corredor estreito, e isso porque para
passar ao mesmo tempo, um tinha que ficar de lado, e se os dois fossem magros.
Ah sim, ela reclamava com a minha mãe do barulho da minha bota ortopédica, nas
vezes em que eu passava correndo pelo corredor. Havia duas tampas de ferro no
chão, eu não sei se era de caixa d´água ou esgoto, mas reverberava no solado do
meu pisante. Minha mãe retrucava: - Você quer que eu prenda a menina igual faz
com suas filhas? Não faço não, ela precisa respirar.
Não lembro mais muita coisa dessa época, mas sei que meu pai continuava
jogando. Às vezes tinha sorte, comprou outra tevê, e eu vi anunciar que o Uri
Geller apareceria no domingo seguinte e ia entortar talheres, consertar
despertadores, relógios de pulso e muito mais. Fiquei animada porque, há tempos,
meu relógio de ouro, presente da minha madrinha no meu aniversário de nove
anos, eu acho, estava escangalhado. Contei para minha mãe que eu ia me concentrar
e consertá-lo vendo o Uri Geller. Contei para todo mundo. Só que no dia do
programa, uns dez minutinhos antes, meu pai me chamou num canto e disse: “Olha,
teu relógio não está aí não. Não fala nada para tua mãe”. Eu fiquei boba, muda,
estupefata, tudo ao mesmo tempo. Não esperava isso do homem que, apesar de
todos os defeitos, era carinhoso comigo. Na hora do programa, minha mãe falou:
“Pega lá teu relógio, vai começar.” Eu disse algo como “não, deixa para lá,
isso aí é tudo bobagem” e minha mãe insistindo, até que de repente ela me
olhou, viu meus olhos cheios d´água e não falou mais nada.
Morei nessa casinha até meus 15 anos incompletos. Mudamos para a mesma
rua, uma casa de fundos, mas decente, tinha até dois quartos e uma varandinha,
embora o quarto - que eu dividia com meu irmão - fosse passagem para o quarto
dos meus pais. Dessa casa minha mais forte recordação foi o dia em que apareceu
um rato na sala. Eu saí correndo feito doida e me tranquei no meu quarto. Só
que era o último capítulo da novela. Gritava pra minha mãe puxar a mesinha da
tevê mais para cá. Vi o capítulo todo pelo buraco da fechadura.
Nossa, que viagem pelo tempo! E tudo isso porque hoje, no café da manhã, minha
filha perguntou se eu me lembrava do dia em que ela nasceu, imagina. Aí me veio
à memória essa história... a banheira rosa, coisa de bebê, coisa de menina,
coisa de mãe.
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Leia também o conto de novaes/ clicando no link abaixo:
http://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/2012/12/conto-integrante-da-antologia-premio.html
Leia também o conto de Carlos Benites clicando no link abaixo:
http://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/2012/12/conto-integrante-da-antologia-premio_18.html
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Achei essa crônica muito bonita, sensível. A crônica tem essa capacidade admirável de elaborar os fatos reais, ajudando o autor a compreendê-los, assimilá-los, e os leitores a viajarem por histórias que, de uma forma ou outra, tangenciam sua própria história pessoal. Ou, então, soam como o aprendizado de um universo estranho e aí se ganha como se fosse um conto, uma ficção, que nos agrega um mundo novo. Já no blog Alma Levada havia visto esse dom da Rita para crônicas, textos que comentam a vida, os fatos, a realidade. Mas esta crônica selecionada pelo Prêmio UFF aprofundou, a meu ver, essa identificação de Rita com o gênero. Nota 10.
ResponderExcluirRita, lembro-me muito bem da sua crônica, um dos bons trabalhos que lemos. Permita-me dizer: seus textos melhoram cada vez mais. Não sabia que era sua. Não lembro a colocação que dei a ela, mas foi selecionada com mérito. Sua crônica tem excelentes parágrafos, descrições bem feitas, um ritmo muito bom e trechos melhores ainda quando você mostra as dificuldades da mãe e as fraquezas do pai. Muito bem ambientada. No meu entender, teve um ponto fraco, o fechamento. Acho que o parágrafo final quebrou um pouco o ritmo denso do texto, enfraqueceu um pouquinho. Mas, veja, isso é no meu entender. Na minha opinião, todos os trabalhos selecionados (sua crônica e as outras selecionadas)merecem dez, ficando as colocações a critério dos julgadores. Acho que, dessa vez, e espero que assim seja daqui por diante, você segurou rédeas. É o que eu lhe disse uma vez, segurar as rédeas, esperar um pouquinho, reler... Muito bom, Rita, um belo trabalho. E, ao contrário do que escreveram, acho que mais uma vez o CLIC foi vitorioso, pois os trabalhos dos seus membros estão aí na coletânea, publicados, eternizados. E é bom dizer que num concurso literário, as distâncias que separam as colocações são mínimas.
ResponderExcluirUm grande abraço.
Carlos Rosa.
Rita, que crônica tocante. Surpreendente, eu diria. Pois aprecio muito a sua poesia, mas crônica acho que é a primeira que leio sua. Realmente, como disse outro dia o Newton, você acertou a mão nessa crônica. Gostei bastante. Parabéns!
ResponderExcluirMuito linda a sua crônica, Rita. Viajei em sua história, no tempo, na saudade, na sensibilidade... Parabéns!
ResponderExcluirA todos os comentaristas masculinos acima, meu sincero agradecimento, assim como às leitoras Elô e Neide, que comentaram no meu blog, ao Benites e Angélica, que comentaram no face - ai que vou me perder em tantas plataformas (é assim que fala?). Eu gosto muito de escrever e realmente me identifico bastante com as crônicas. Não tinha feito essa para o concurso, mas fiquei feliz que se encaixasse no tema. Tomara que o do ano que vem também renda.
ResponderExcluirRita,querida,
ResponderExcluirExcelente, sua crônica. Memórias... Lembranças... Muito bem descritas. Crônica de um passado. Mereci,a meu ver,ser premiada. Fez-me lembrar meu conto, "As Cartas" que, oportunamente, irei
enviar-lhe. Parabéns, mais uma vez! Não me canso de aplaudi-la.
Abraços afetuosos
Elenir
Que legal Rita... Me levou a ter lembranças daquela casa que conheci quando pequena. A Sandra morou lá... Realmente era um cubículo. Lembranças doces e amargas ao mesmo tempo mas que fazem parte da sua história e do seu irmão. Parabéns por retratar tão poeticamente fases tão difíceis da vida de vcs.
ResponderExcluirLegal! As lembranças da infância, sejam de Rita, sejam da primeira pessoa ficcional, nos levam a rememorar nossas próprias lembranças. Alguns rememoram anos dourados, outros tempos difíceis. Na serenidade da lembrança, com a esperada maturidade da vida adulta, podemos encontrar no passado, crianças felizes por viverem a inocência e desfrutarem do legítimo direito de delegar responsabilidades aos pais adultos. Crianças que mesmo usufruindo deste direito podem perceber o peso da responsabilidade. Ao olhar para trás vemos nossos pais, nos comparamos a eles e agradecemos pela luta para nos dar um futuro melhor que o passado. Parabéns!
ResponderExcluirRita, que vontade de repetir praticamente tudo que eu disse sobre o conto do Newton sobre sua crônica. Achei muito boa, muito mesmo. Assim como o conto do seu amado, sua crônica tem um movimento interessante, nos sensibiliza. Você concluiu tão bonito sua crônica, chegando na pergunta da sua filha, que só por essa tacada, vou lhe conferir um prêmio maior que um leitor pode dar (admiração e reconhecimento pela obra lida): "você é boa nisso". Continue nos brindando com crônicas desse tipo. GOSTEI DEMAIS.
ResponderExcluirBjs. ................Angela Ellias.
Relembrar a infância faz a gente crescer, não é Ritinha? O que mais me tocou na sua crônica foi a lealdade da menina, que embora com o coração partido pela falta do relógio silenciou a sua decepção. O jogo naquela época era a droga, que atualmente tira a dignidade de muitos pais e da sua família. Histórias tristes que não é nada fácil falar sobre elas.
ResponderExcluirBeijinhos e parabéns!
Parabéns, Rita. Ótima crônica. Leve, sensível e tocante. Boa sorte no Prêmio. Bjs Mariana Barra
ResponderExcluirEstou com minha mãe aqui em casa e ela está se viciando na leitura (sim, tem meu dedinho aí), felizmente. Dei para ela ler o mais recente livro de Gracinda, "Olhando para trás", e ela devorou. Ao fim comentou as tantas coisas que as memórias de Gracinda a fizeram lembrar. Isso é tão bom, quando um texto nos remete a um contexto similar e a gente se vê, misturado com o escritor, embolado nas letras, no sonho, fazendo a viagem. Fico muito feliz que tantos amigos tenham tido essa empatia com a minha crônica. Obrigada Mariana, Lilian, Angela, Cintia, Cristiane, Elenir, Maria Lucia. Vocês me emocionam com suas frases. Muitos beijos.
ResponderExcluirRita:
ResponderExcluirExiste em seu conto, um sentimento de nobreza, uma aristocracia espiritual, tal como um artista diante do seu palácio de espelhos, um nobre em seu ateliê.
Ah......... A nobreza da criação, da exaltação ao amor, à memória, ao perdão.
Sem esse pão e vinho, talvez a Rita, não fosse essa da nossa imaginação, que brinca com as palavras, que repleta de sótãos inconscientes, nos abre para um olho na janela da vila, ou da vida dura, mas pensada, exaltada, modificada..................
Os espelhos dos palácios silenciosos duplicaram a pegaram de um modo existencial, obrigando-a a jorrar palavras com tintas delicadas no mouse do computador!
Apesar do sofrimento, das dúvidas, da falta de sentido, com isso você deu sentido humano à sua existência, à minha e de quantos lerem!!!!
Abraços.
Fátima