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11 de dezembro de 2012

Debate n'"As Nuvens"

Bom dia Clube!


Terminada a leitura, compartilho os trechos que me chamaram a atenção, reflexões provocadas e ligações com obras que dialogam com o tema...

Pg.16 “...sou o doutor Real, especialista nas enfermidades que depauperam não o corpo, mas a alma.”

Gostei da visão que o autor traz da humanização no tratamento, do reconhecimento que o que precisa ser cuidado é a alma que sofre. Este desvio de olhar a doença como algo que se restringe ao corpo em si é bastante polêmica e atual, face ao retorno da discussão do ATO MÉDICO.  Este visa restringir o campo de atuação de diversos profissionais de saúde,   determinando procedimentos a serem realizados exclusivamente por médicos.  Na minha visão, uma forma de fragmentar o olhar sobre o humano, que, por sua natureza, é pura complexidade.  Vejo que as instituições que atuam com equipes multidisciplinares são as que conquistam melhores resultados.  Trata-se uma espécie de Clube de Leitura do ser e seus sintomas - cada um "lendo" a partir de suas perspectivas... 

Pg. 20 “Dedicar-se a conseguir que um louco se comporte como todo mundo é como querer mudar o curso de um rio.”

Assistindo uma palestra de um psiquiatra e psicólogo que utiliza a filosofia clínica como prática profissional, ouvi o seguinte:
"Se você parar para pensar, um louco é aquele que não se adapta ao contexto.  Mas, pensando neste contexto atual, quem se adapta a isto  É O QUÊ??"
Foi lido numa porta de hospício:  "NEM TODO MUNDO QUE É, ESTÁ.  NEM TODO MUNDO QUE ESTÁ, É."
Relativizar loucura e sanidade é outra grande discussão...  Como bem Elô lembrou, há que se citar o "Alienista" do mestre Machado de Assis.  Ser autêntico é uma ameaça, uma transgressão.  A leitura do "Admirável Mundo Novo" nos fez navegar na dor, delícia e insustentabilidade do enquadramento às expectativas sociais...

Pg. 26 “... doutor achava que os atributos exigidos pelo trabalho delas – inteligência, doçura, força física e paciência – não dependiam de instrução.”

Concordo com ele!  Em alguns anos de acompanhamento de minha mãe em hospitais, senti  que a energia de quem cuida é fundamental para o processo de cura do paciente. Há PHD's inábeis nas relações que matam esperanças e possibilidades de cuidar dos outros corpos, quando o físico já não tem saída.  A sensação que tenho é que há muitos universos e que há pessoas que só enxergam um (o corpo, a razão, a ciência). O humano ainda é muito desconsiderado nos ambientes de saúde - tanto em relação ao paciente, quanto à equipe de saúde, e também a familiares e cuidadores.  Há estatísticas assustadoras de índices de suicídio de profissionais de saúde que atuam em UTI's.  E que práticas estas instituições adotam para melhorar este cenário?

Pg. 29 “... tenho de registrar que, em sua esmagadora maioria, os numerosos doentes que tivemos a nosso cuidado pareciam gozar de uma saúde excepcional do ponto de vista físico.  Instalados num mundo próprio, inteiramente criado por sua imaginação delirante, não raro incompreensível para os demais, pareciam protegidos das contingências naturais que aqueles que, como se diz, gozam de total discernimento, têm de suportar.”

O ambiente tem grande influência sobre a psique.  Lembro-me daquela tragédia no campo do Vasco, que por uma superlotação, as grades foram derrubadas e muita gente ficou ferida, pisoteada.   Lembro-me de um especialista dizer: "Quando você trata as pessoas como animais, elas agem como animais".  Retirar a área da GERAL do Maracanã e colocar cadeiras foi uma das iniciativas para evitar atos violentos.  Há um filme que ainda não vi, mas sei que mostra este processo: "Bicho de sete cabeças". Há tantos outros exemplos...

Pg. 74 “...nem bem empreendemos a viagem para a Casa de Saúde, já que, quase no exato instante em que abandonamos a cidade, nosso paciente saiu do estado de estupor.”

A Nise da Silveira dizia que o melhor tratamento para a loucura é a LIBERDADE. O Raul Seixas dizia que se você cerca uma pessoa, ela dá um jeito de escapar.  Se você fecha o cerco e não deixa saída, ela enlouquece... porque loucura é uma espécie de liberdade.

Pg. 146 “Mas minha consciência, rebelde, persistia, sussurrando-me: ‘se este lugar estranho não fizer um homem perder a razão, ou ele não é um homem, ou já está louco, porque é a razão que engendra a loucura.”

Sem comentários.  Esta frase fala por si.

Pg. 148 “...diferentemente dos outros, eram difíceis de manobrar devido ao fato de que, como tantas vezes acontece com certos tipos de louco, em vez de trancarem-se em si mesmos, acreditavam fervorosamente na legitimidade de seus delírios e, querendo a todo custo impô-los ao mundo, militavam em defesa de sua loucura.”

Hoje no círculo de biblioterapia, vamos trabalhar o livro CRENÇA & CÉREBRO do psicólogo Michael Shermer que defende que o "nosso cérebro constrói crenças por várias e diferentes razões subjetivas, pessoais, emocionais e psicológicas, em contextos criados pela família, amigos, cultura e sociedade.  Uma vez consolidadas essas crenças, nós a defendemos, justificamos com razões intelectuais, argumentos convincentes e explicações racionais.  Primeiro surgem as crenças e depois as explicações."
É interessante quando ele cita Copérnico que queria demonstrar uma nova visão de mundo através do telescópio e da resistência de, por exemplo, Cesare Cremonini da Universidade de Pádua, que estava tão comprometido com a cosmologia aristotélica que se recusou até mesmo a olhar pelo tubo.  Galileu carregava uma grande frustração:  "Quando quis mostrar os satélites de Júpiter aos professores de Florença, ele não viram nada, nem o telescópio."  Já diz o dito popular:  "o pior cego é aquele que não quer ver."
Fazemos isto o tempo todo.  Neste ponto, estamos todos unidos em defesa de nossas loucuras (ou ilusões)...

Pg. 163 “... a experiência me mostrou inúmeras vezes como é difícil saber qual é a percepção exata que os loucos têm da realidade, o que explica, como penso ter dito um pouco acima, que para muita gente loucura e simulação sejam quase sinônimos.”

Na literatura, a loucura é um tema apaixonante... O "Elogio da Loucura" de Erasmo de Rotterdam, mostrava-a como instrumento liberdade de critica ao dogma católico.  Em "O rei Lear" de Shakespeare, o rei enlouquece por ter a alma violentada pela culpa.  Ele é acompanhado por um "bobo", que como o louco, tem a liberdade de dizer. No decorrer desta história, o bobo mais parece com um sábio.  Isto fez-me lembrar de outra frase inspiradora: "Os loucos abrirão caminhos que, mais tarde, serão percorridos pelos sábios." Jean Paul Sartre

Falei bastante aqui, para calar na próxima reunião e abrir espaço de expressão de outros.

Abraços a todos e até sexta.

Cristiana


Grande Cris,

Este livro, para as psicólogas do CLIc, deve ter sido uma festa... Imagino o que não gerou de curiosidade e interesses analíticos, psíquicos, enfim, deve ter sido como se fossem o doutor Real, com a vantagem de estarem em pleno século 21, muito após Freud, Jung, Lacan...

Bem, este é apenas um devaneio meu, ignorante confesso das loucuras (exceto as minhas, claro, que cultivo com o mesmo carinho do dr. Real. De vez em quando as levo a passear e atravessar desertos...).

Algumas coisas me chamaram a atenção em "As Nuvens", de Juan José Saer:

  • Não li outros de Saer, então não sei se é uma característica dele, ou apenas deste livro: o autor tem um prazer especial na descrição das paisagens, e faz isso tanto quando se refere à natureza, à planície, ao deserto, à laguna, quanto quando se refere aos doentes, esquadrinhando a aparência de suas loucuras, o gestual, o olhar, a apatia ou a atividade frenética. Passo pelo livro com a impressão de ter visto um álbum de fotografias ou, melhor, um apanhado de imagens caseiras em vídeo, que alternam paisagens e doentes, doentes e paisagens, e captam o exterior de tudo com fidelidade. Há beleza, claro, nessas descrições.
  • Quanto ao "interior" dos personagens, porém, senti-me órfão. Esperava por parte do dr. Real, que narra a história, não diagnósticos precisos, mas pelo menos algumas especulações.
  • Os sons captados pela "filmadora" de Saer carregam algo de mistério e confirmação. Os animais selvagens que se esgueiram em meio ao capim do deserto, o som de seu deslocamento serve para confirmar sua presença, embora permaneçam não-vistos, invisíveis. Os sons dos irmãos Verde, misteriosos por si, componentes de linguagens incompreensíveis para os demais humanos, servem para confirmar suas "loucuras", seu mundo próprio.
  • Os sons guturais, as palavras incompreensíveis de Troncoso perante os índios: mistério que "hipnotizou" o líder e o grupo indígena, como se confirmasse para eles a demência que temiam como a um espírito do mal - misterioso e, por isso, possivelmente malévolo.
  • Algumas cenas primorosas:
  • 1) quando o dr. Real se vê sozinho naquela imensidão natural e afirma julgar-se o único homem que experimentou a solidão ("sou a única pessoa no mundo que sabe o que é a solidão, o que é o silêncio" - pág. 140). Deu inveja. Gostaria de viajar para lá e ficar lá, naquela mesma paisagem, por algumas horas, imerso no silêncio. Talvez um dia inteiro. Ou uma semana. Se os assim chamados "loucos" ignoram o mundo exterior, será que eles vivem neste silêncio? Seria um "silêncio" protetor? E, numa pessoa sadia, este silêncio exterior (real) não levaria a uma terapia revigorante? Um ajuste consigo mesmo, pela ausência de outras pessoas e a forçada e necessária conversa interior de nós com nós mesmos, sem escapatória, sem distrações? Isto, na dose certa, não seria terapêutico?
  • 2) o encontro do louco Troncoso com os índios. Fugira do comboio a fim de convencer os indígenas sul-americanos a insurgirem-se contra a dependência à Coroa Espanhola e seu Vice-Reinado local. E, até que o dr. Real pudesse escutar o que dizia, parecia que os índios estavam gostando da falação revolucionária do louco, a ponto de pouparem-lhe a vida e ouvirem atentamente. Era 1804. A independência argentina ocorreu em 1816, apenas 12 anos depois. Já era um tema, portanto, colocado em pauta naquela sociedade. Em seguida, segundo a narrativa do dr. Real, Troncoso, que sempre fora deveras eloquente, exprimia-se de modo incompreensível... Será que estava falando em guarani e dr. Real não percebeu?
  • Mistério.... e confirmação? 
Abs,
Newton





Boa noite Clube!
Desde que li o caso de Teresita, em As Nuvens,  fiquei lembrando desta santa Teresa de   Ávila. Parece-me que o escritor está se inspirando nela para suas  críticas ao misticismo.Ela era escritora e seus textos carregam um mistico sensual. Nossa personagem idem.


"Vi a mi lado a un ángel que se hallaba a mi izquierda, en forma humana. Confieso que no estoy acostumbrada a ver tales cosas, excepto en muy raras ocasiones. Aunque con frecuencia me acontece ver a los ángeles, se trata de visiones intelectuales, como las que he referido más arriba . . . El ángel era de corta estatura y muy hermoso; su rostro estaba encendido como si fuese uno de los ángeles más altos que son todo fuego. Debía ser uno de los que llamamos querubines . . . Llevaba en la mano una larga espada de oro, cuya punta parecía un ascua encendida. Me parecía que por momentos hundía la espada en mi corazón y me traspasaba las entrañas y, cuando sacaba la espada, me parecía que las entrañas se me escapaban con ella y me sentía arder en el más grande amor de Dios. El dolor era tan intenso, que me hacía gemir, pero al mismo tiempo, la dulcedumbre de aquella pena excesiva era tan extraordinaria, que no hubiese yo querido verme libre de ella."

Eloisa

* * *

Colegas,

infelizmente, o trânsito de Niterói me fez chegar atrasado e fiz um comentário apressado e curto que não deve ter sido entendido pelas pessoas do grupo que não leram minha "postagem", a qual segue abaixo:


Caras/os colegas do Clube de leituras, não terminei de ler o livro mas 2 coisas despertaram a minha atenção. A primeira é como o autor  é hábil em "espalhar" suas  considerações em relação à "definição" de "Loucura" e "Normalidade" ao longo do livro. Esta abordagem não "pedagógica" faz com que o leitor se perceba como alguém que também tem seus momentos de loucura e os aceite com maior naturalidade.

O segundo aspecto que me chamou atenção é "o que não está dito/escrito", ou seja, o "ascetismo" sexual do Dr. Real. Até o momento, ele não "pecou" em atos ou em pensamentos. 

Naturalmente, considerações sobre este aspecto da libido do narrador poderiam desfocar sua ênfase na descrição sobre o que é "normalidade" e o que é "loucura" na nossa vida cotidiana seja a nível individual seja a nível da sociedade. Não sei se o narrador irá se apaixonar por alguém na parte que ainda não li. Desta forma, não posso fazer comentários definitivos sobre se a grande paixão da sua vida seria, na verdade, o Dr. Weiss (não só simbolicamente e como mestre).

...



Terminado de ler o livro, fiquei em dúvidas se o autor não teria graduação em Psicologia ou Medicina devido à excelente caracterização dos sinais e sintomas apresentados pelos vários doentes. Sinais e sintomas que todos nós apresentamos de forma atenuada cotidianamente. A este ponto, não posso deixar de recomendar o livro "Luto e Melancolia" com o texto do Freud editado pela Cosaf naif, não só pela excelente tradução mas também pela Apresentação escrita pela Maria Rita Kehl (ver http://www.youtube.com/watch?v=mYusp6vahK8) e pelo Posfácio escrito por Urania Tourinho Peres.

Em relação à sexualidade do Dr. Real, achei que seria um tópico interessante para uma discussão psicanalítica/literária, Naturalmente, não existe qualquer insinuação da parte do autor de em relação a qualquer envolvimento sexual explícito entre o Dr. Real e o Dr. Weiss. Por outro lado, é curioso o contraste entre a "gula" sexual do Dr. Weiss e da soror Teresita, por um lado, e a indiferença do Dr Real em relação a este lado físico/afetivo da nossa existência, exceto, por uma certa condescendência e, até admiração, pelas "peripécias"do Dr. Weiss com as prostitutas e as casadas.

Finalmente, serei breve, os comentários do Dr. Real sobre as várias faces da religião, seja em relação a quem estabelece as regras a serem seguidas, seja para quem as interpreta e as segue de maneira própria, são muito pertinentes e inteligentes, merecedoras de análises antropológicas e históricas sobre o papel que as religiões tem representado a nível individual e social.

Um grande abraço,

Luiz Gawryszewski (Gavri)   




 Luís e grupo,

também tive a mesma impressão.  Como Helentry com Teresita se lembrou, com propriedade, de Teresa D'Ávila, lembrei-me de Sherlock e Dr. Watson, de House e Dr. Wilson. Não sei se seria pelo menos da parte do Dr. Real,   o que chamam de   bromance (brother+romance) a relação forte de amizade entre dois homens, um relacionamento íntimo, mas sem a parte sexual.  

Agora é que notei que nas duplas aqui citadas há pelo menos um médico.

Vera Leite


5 comentários:

  1. Querida, Cris, excelentes suas reflexões sobre "As Nuvens"! Estou certa de que, na 6ª feira, muito mais, ainda, você terá para dizer-nos.Gosto de lê-la e ouvi-la. Aprendo muito.
    Obrigada! Beijos.
    Elenir

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  2. Evandro, vc está muito tenebroso nessas imagens escolhidas para ilustrar o post... Essa chorando no final é a sóror Teresita? Deve ser, mas, pela tristeza, é de depois dela reprimir seus lascivos impulsos... antes ela parecia muito feliz e animada.

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  3. Cris, só hoje pude ler seu texto e o do Newton, mas deixei separadinho porque sabia que era coisa boa. O livro também não me arrebatou, mas adorei o tema e a riqueza de discussões que pode e já está trazendo. Amei ainda mais seu e-mail em resposta ao Newton, com aquelas frases lindas do Bartolomeu. Para ler e reler e depois ler de novo, respirando o silêncio. Por fim, deixo o primeiro verso da Balada do louco para nossa reflexão:
    "Dizem que sou louco por pensar assim
    Se eu sou muito louco por eu ser feliz
    Mas louco é quem me diz
    E não é feliz, não é feliz"

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  4. Qual será o bastão da fala? Uma camisa-de-força?.....

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  5. E o bastão foi ... uma faca que atravessava a cabeça!

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