Lá vem ela. Vamos passar um pelo
outro novamente. Vamos nos reconhecer, mas vamos fingir que não. De longe já
sabemos que o outro vem vindo, e sentimos, talvez, a mesma expectativa
desagradável de fingimento.
Por que não nos falamos? Passou
tanto tempo sem que nos encontrássemos... Disseram-me que ela havia se mudado
para o norte com os pais. Qual não foi minha surpresa quando a vi nessas ruas,
já mulher feita, mas com o mesmo brilho sapeca no olhar. Aí não nos falamos da
primeira vez; e assim ficamos. Será o tempo que apaga tudo? Apaga até uma
amizade?
Lá vem ela. Vai haver aquele olhar
de quem não olha, meio enviesado entre duas piscadelas. Depois continuaremos em
nossas direções com a impressão enjoada de que um deveria ter falado com o
outro.
Lá vem. Está atravessando a
Presidente Backer. Nos encontraremos em frente ao Banco do Brasil. Continua
magra, espigada, bonita. É mais velha do que eu, mas parece tão jovem. O andar
é igual ao de quase quarenta anos atrás. Andar de pernas compridas, mas de
passos curtos e rapidinhos. Lembro-me dessas pernas dentro de uma minissaia
quadriculada, lá naquela rua, nossa rua. Haja tempo...
Lá vem ela. O mesmo olhar oblíquo
para baixo, os mesmos braços cruzados sobre o peito. Vem ligeirinha e decidida,
passará por mim agora...
‒ Oi, Emília!
Assustei-a. Tirei-a de sua
contemplação oblíqua, impedi-a de sentir a costumeira impressão enjoada ao
passar por mim. O brilho sapeca me fitou. Fui recebido por um sorriso
resplandecente, ainda levemente dentucinho. O mesmo de antes; sorriso rasgado e
luminoso de olhos e boca.
‒ Oi, Carlos!
‒ Como eu desejava falar com você!
Afinal, não é direito amigos de infância se cruzarem e não se cumprimentarem.
‒ Eu também sempre tive vontade de
falar com você!
‒ Você continua bonita, Emília.
‒ E você não mudou nada. Tá bastante
charmoso com esses cabelos grisalhos.
‒ Precisamos conversar, contar
nossas histórias qualquer hora dessas.
‒ Ah, passe em minha loja, é aquela
ali, tá vendo? Vamos conversar, não deixe de passar.
‒ Passarei, prometo.
E com beijinhos e sorrisos nos
despedimos, continuando, cada um, em sua direção. Ainda nos demos um “té logo”
à distância, que foi como se firmássemos o prazer pelo encontro.
Foi muito bom ter falado com a minha
velha amiga. É uma amiga, guarda muitos olhares, sorrisos, conversas, imagens
de um tempo singelo e feliz. É como uma foto rara. Não poderia deixá-la por aí.
O nome dela é Emília ou é Dília? Margô
ResponderExcluirDília está na foto. A personagem chama-se Emília. Mas espero que a Dília fique para sempre minha amiga, e que em todo encontro haja abraços, beijos e sorrisos, passe o tempo que passe.
ResponderExcluirCarlos.
E lá vem Rosa com mais uma lição de gastronomia do olhar, n'est-ce pas, monsieur? C'est de l'art de flanêrie!
ResponderExcluirAmigo Carlos,
ResponderExcluirUm dia algum estudioso ainda vai desenvolver uma tese sobre o papel da aparência física em alguns de seus textos. As belas e as feias, as magras e as gordas, as jovens atléticas e as já pelancudas, os homens barrigudos, de membros flácidos... Interessante esse viés. Como se fosse uma estética da estética. Uma descrição que de fato nos ajuda a imaginar o personagem, onde o físico é indissociável da personalidade, um constrói o outro... Não sei explicar, mas achei fascinante essa característica em alguns textos. Ou seja, apesar de cirurgicamente econômico nas palavras - um dado magnífico do seu estilo - você consegue ser extremamente expressivo nesses textos com essas imagens do corpo/personalidade. Coisa de mestre. E nós, mortais, vamos aprendendo...
Abs,
Newton
Newton, obrigado pelo comentário. Vamos conversar sobre isso qualquer hora.
ResponderExcluirForte abraço.
Carlos.
O que me interessou não foi aparência, imagem ou algo que remete só a visão, mas a descrição dos detalhes do conto.
ResponderExcluirLembrou-me amigos de outrora, talvez, pela crise que vivo dos quase quarenta anos de idade...rs
Helene sabe o que me atrai, por isso indicou-me essa leitura.
Muito bom, adorei.
Gostaria de fazer um comentário, embora diga de antemão que ele não tem a menor importância. É sobre essa questão de gêneros literários, coisa de somenos para o leitor, a não ser que ele seja crítico literário ou literato. Esta seção chama-se "Clube do Conto", mas aí em cima está uma típica crônica, um momento banal de duas vidas captado e descrito, poderia até ser uma foto. O gênero crônica, do qual tanto gosto e ao qual me dedico amiúde, é considerado por alguns como gênero "menor" (não me incluo entre esses e muitos literatos também não se incluem) seria, grosso modo, irmão pobre do conto. Como digo acima, isso não tem importância para o leitor, mas é preciso o escritor discernir entre um e outro, embora, às vezes, um possa se aproximar tanto do outro que se torna difícil distinguir o que é conto e o que é crônica. Agradeço muito os comentários, e, elogiosos ou não, são importantíssimos, pois são comentários de leitores frequentes, interessantes e sofisticados, ou seja, pessoas que curtem Literatura mesmo.
ResponderExcluirUm grande abraço a todos.
Carlos Rosa Moreira.