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12 de outubro de 2012

Clube do Conto - Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás: Carlos Rosa Moreira



            Dirceu dormia cedo. Às nove a boca já abria e as pálpebras pesavam. Uma vida de trabalho influenciara naquele seu jeito de ser, afinal, foram quarenta anos acordando antes das quatro para pegar ônibus, lancha e trem até Santa cruz. Um viajão na ida e outro na volta. Depois chegou a aposentadoria e os dias ficaram iguais a eternos domingos: acordar cedinho, comprar pão, fazer café; às vezes uma voltinha com Alzira, às vezes um bate-papo no jornaleiro. Vida simples e a mesma casinha construída em 1955 numa rua sossegada de Santa Rosa. Mas naquela primeira hora da madrugada, Dirceu ainda estava acordado. Na noite anterior, por conta de incomum insônia, procurara um filme na televisão e descobrira o canal.

            Alzira dorme. Sempre dormiu antes dele. Chega a roncar com a boca aberta, o barrigão esticando o lençol, os seios moles se esparramando pelas axilas. O sono é pesado, a claridade do televisor não a incomoda. O som está diminuído, não precisa de som. Duas morenas fizeram o diabo sobre um gramado; agora a mulata serpenteia por entre almofadas. Elas mostram tudo, nuinhas, e a câmara lá, no detalhe.

            Dirceu se preocupa com Alzira, se ela acordasse seria um constrangimento. Ficaria magoada. Que desgraça ser flagrado vendo programa de mulher pelada. Ela poderia desconfiar do passado. No passado não houve nada, só o beijo naquela colega de trabalho boazuda, a Dora. Foi um beijo fugaz, nascido de um momento de alegria na festa de fim de ano na repartição. Até que a Dora queria mais, mas ele se esquivou, arrependido da pequena aventura. Dora passou o resto da festa puta da vida, dançando com a bunda arrebitada só para mostrar o que ele havia perdido. Às vezes pensava naquele dia, na bunda da Dora, e aí ficava arrependido de novo.

            Na tela surge uma loura. A loura rebola, senta, levanta, escancara as pernas e a câmara lá, no close. Dirceu roda a flacidez entre os dedos. Tem um olho na tela e o outro em Alzira. A loura se arreganha e Dirceu puxa, estica, se acaricia.

            Há muito que ele e Alzira são como dois irmãos. Ela enorme, barrigão; precisou operar, tirou quase tudo. Cresceu um buço, engordou muito. Ele foi perdendo a vontade, vida caseira...

            A loura saiu de cena; apareceu a ruiva da noite anterior. Dirceu sempre foi doido por ruivas. Ela é perfeita. Tira tudo e mostra um fio de labareda percorrendo o monte generoso. Dirceu aperta, afaga, segura o membro adormecido. Depois dos closes e das rebolações a ruiva sai andando gramado afora, até desaparecer. O programa terminou. Mas Dirceu continua com as morenas, com a mulata, a loura, a ruiva, Dora... Ele se apalpa e sente como se houvesse uma quebra na comunicação entre o cérebro e o resto. Levanta-se, vai ao banheiro, senta-se no vaso. Alzira pregara um espelho quase em frente ao vaso, de modo que vê seu rosto e parte do tórax. Dirceu não presta atenção ao espelho e começa um movimento vagaroso e cadenciado. As mulheres desfilam em sua cabeça exibindo isso e aquilo. Dirceu mexe, mexe, mas é difícil fazer assim, tão flácido, e ele vai se desconcentrando e acaba percebendo sua figura refletida, a cara e o pescoço vermelhos compondo um elmo sobre a brancura do tórax magro. Sente-se ridículo ali sentado, se movimentando todo com aquela cara contraída pela excitação. Começa a ter um pensamento qualquer, bobagem do dia a dia, e se perde em seu próprio olhar. Então seus olhos se lembraram do Dirceu rapaz, de coisas passadas havia muito, como tudo em sua vida. Lembrou-se de uma noite quando chegou à casa de Alzira. Entrou como de costume pelo corredorzinho do lado, quando ia bater, um quadrado luminoso clareou o terreiro a seus pés: Alzira havia acendido a luz do seu quarto, acabara de sair do banho enrolada numa toalha. Dirceu ocultou-se. De olhos arregalados via sua noiva desnudar-se aos poucos, desenrolando a toalha do corpo para terminar de se enxugar sobre a cama. Alzira de longos cabelos molhados, de formas tão perfeitas, de pele delicada evidenciando um triângulo negro e vistoso.

            Ao espelho refletia-se uma imagem oca, pois o verdadeiro Dirceu estava no quintal da casa de sua noiva numa noite perdida havia mais de cinquenta anos. Diante dos seus olhos, a virgem Alzira naturalmente nua, em pé sobre a cama de solteira. Ela nunca soube, mas naquela noite, o instinto do jovem macho somou-se à candura do amor do jovem Dirceu, ao poeta apaixonado que ela despertara nele. Oculto pelas sombras do quintal, ele deu vazão ao desejo e ao amor que por toda a vida os mantiveram unidos.

            O rapaz Dirceu; o velho Dirceu. Ambos espreitavam Alzira nua sobre a cama. E Dirceu, o apaixonado, mal respirava ao se lembrar de sua fêmea linda e tentadora. Alzira... Alzira num trailer colorido mostrando momentos inesquecíveis ao longo da vida, momentos de amores intensos e gozos loucos.

            Então foi chegando uma quentura, uma potência, uma firmeza; os músculos se entesaram, a respiração aumentou. Dirceu viu-se tomado por uma onda arrebatadora que cresceu, foi crescendo, obrigando-o a abrir a boca e arregalar os olhos e não ver nada, só Alzira, nua, tímida, mas oferecida, fazendo o que ele queria naquelas noites tão distantes que pareciam ontem. A onda se dobrou vagarosamente com aquele volume formidável de onda grande que vai estrondar o chão; e veio, veio incontrolável, puxada pelos movimentos frenéticos de Dirceu. Até que aquilo tudo se arrojou numa velocidade louca, explosão alucinante seguida de um delírio que logo se esvaneceu como esteira de onda sobre a areia seca.  Com a boca aberta, o coração disparado, a cabeça apoiada na válvula da privada, Dirceu olhava o teto, sem nada pensar, surpreso como quem chega de lugar nenhum. Então o instinto se apaziguou, a respiração se tranquilizou, o espírito se acalmou. Viu sua imagem estupefata diante do espelho, ficou um tempo pensando naquele sucesso que há tanto não ocorria. Ficou pensando, pensando e a excitação definhando. Não sabe por que se lembrou da arruela da torneira que precisava ser trocada e do carnê do INSS da empregada. Levantou-se e foi para o quarto. Deitou-se ao lado de Alzira que roncava baixo. Virou-se de lado, fechou os olhos, dormiu.

8 comentários:

  1. Bravo, bravíssimo! Adorei, desde o título - adoro picardia, sem trocadilho, por favor - ao final, passando pelo desenrolar da estória e inclusive pela excelente imagem repugnante que acompanha o texto, provável escolha de Mr. EPA. Achei brilhante a descrição do ato, começando pela frase "Dirceu roda a flacidez entre os dedos" até "a cabeça apoiada na válvula da privada". Que M de vida essa do casal, hein? Agora, mesmo assim, foi pensando em sua Alzira e em sua juventude que Dirceu conseguiu chegar as vias de fato. Isso é bonito, quase poético. Se ao menos Alzira soubesse da variedade de programas na TV... a vida do casal podia dar uma reviravolta, uma pirueta, no melhor sentido, é claro.

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  2. Já conhecia este conto, publicado num dos livros do Carlos. Muito bom. Muito forte na solidão que espelha - tão comum na vida humana, nos casais envelhecidos mais pela rotina e vida medíocre do que em seus corpos propriamente. O corpo aqui, flácido, gordo, parece que revela o espanto do autor. Um espanto que parece ser com a própria condição geral em que vive o casal (seria a condição humana real?) - mas que se materializa na visão do barrigão, na constatação do membro flácido, como se a vida de ambos já estivesse com a data de validade vencida. Mas pelo menos houve vida. Há memória. Houve beleza. E graças a isso ainda há prazer. Mesmo que solitário e fugidio. Este conto, Carlos, chega a ser cruel. O olhar desencantado sobre a rotina e sobre a decadência - a que todos nós estamos sujeitos -, o sabor amargo da frustração (aahh... a bunda da Dora...), a patética busca de alguma vida, alguma reação, com o filme pornô, a solidão do esquecimento que se resolve com a lembrança da juventude... tudo isso machuca um pouco a alma... Mas faz pensar. E há o espelho, em frente ao vaso sanitário, flagrando o momento da angústia. Um espelho que parece dizer: quem disse que estou falando de Dirceu? Cada um olhe para si.
    Parabéns mais uma vez Carlos. Mas, por favor, na próxima postagem coloquem na imagem, pelo menos, a bunda da Dora. Pra aliviar um pouco...

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  3. Meu caro Barra, além de bom contista você é corajoso para dizer certas coisas. Olha a água fervente no ouvido, hein! Obrigado a você e a Rita pelos gentis comentários. É isso que vocês disseram mesmo.
    Abraços.
    Carlos.

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  4. Admiro a ousadia do Carlos, aborda questões, fatos, que acontecem na vida das pessoas, mas que normalmente não se comenta por polidez! elegância! hipocrisia! Por que falarmos de coisas tão crueis?, muitos dirão. Acho importante , é um alerta, um preparo. Eis o que nos espera ou já ocorre... Porém, ai, porém, há um Clube que abre mentes, um video que nos diz "Ensina-me a Viver", um brilho no olhar, um sonhar, a brisa do mar. A vida tem muitos prazeres. E Vinicius estava certo kkk
    Carlos, como sempre um trabalho de fino artesão com as palavras!
    Bjs,
    Elô

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  5. Carlos você é impagável. Caramba, vou aprender a desenhar e pintar só pra retratar essas descrições que voce faz em seus contos, são quase palpáveis. "Chega a roncar com a boca aberta, o barrigão esticando o lençol, os seios moles se esparramando pelas axilas e Dirceu roda a flacidez entre os dedos. Tem um olho na tela e o outro em Alzira. A loura se arreganha e Dirceu puxa, estica, se acaricia". Retratos tão reais da vida (isso é bonito, sem retoques cirurgicos, sem idealizações). Decididamente, não colocarei espelhos no teto de meu quarto, seria desastroso para a libido. Obrigada pela dica Carlos rsrsr.
    Que angústia a do Dirceu em ter na mente a lembrança do gozo em detrimento do corpo físico que em nada colabora. Mas Carlos, voce me surpreende com a masturbação mais romântica que já li e ainda por cima, Dirceu é fiel até mesmo nessa hora. Outra passagem bonita é "Tira tudo e mostra um fio de labareda percorrendo o monte generoso". Você é tão poético nessas descrições.

    Bem, parabéns! É um ótimo conto. Tão realisticamente humano.

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  6. Ah, Carlos, doeu ler este conto! Muito cruel!!! Um descompasso entre corpo e mente causado talvez pela mistura de uma rotina mortífera daquele casamento (uma dificuldade de se reinventar) e do envelhecimento dos dois. No entanto, a imagem da Alzira roncando enquanto o insone Dirceu buscava uma linha de fuga foi o que mais me prendeu: aquela mulher ainda deseja aquele homem? Ou é a lembrança do Dirceu voyeur que ainda permite que ela o deseje? Não sei... a imagem dela dormindo pesado indica que a angústia naquele momento era dele... O corpo cansado, disforme, mole, enrugado, lento, o barrigão, a aposentadoria... um caminho para o fim? O desejo ainda mora ali? Num outro conto teu já li essa descrição (imagem) do personagem “traquinando” (seja por um telefonema ou por um canal de TV) enquanto o parceiro dorme (cochila). Se um ronca pesado o outro puxa o fio da memória e encontra no passado uma forma de ressignificar o presente. Algo vem atravessando e impondo um despertar, angustiante despertar, mostrando que onde tem ser... tem desejo, mesmo que adormecido (envelhecido).
    Concordo com Elô, você constrói o conto com artesania. Sem excessos. Cada palavra é estrategicamente criada para puxar o leitor pelas mãos e guiá-lo ao drama existencial de si mesmo.
    Niza

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  7. Sr. Mr. EPA, quase desisti de ler o conto do Carlos por conta daquela imagem repugnante... Ainda bem que prossegui na leitura.

    Carlos, já percebi em alguns de seus contos uma característica marcante, a decadência física do ser humano e a relação de seus personagens com essa decadência. Há imagens neste seu conto - não vou repeti-las aqui porque já foram bem identificadas por outros colegas nos comentários anteriores - que nos revelam o profundo impacto que a decadência do corpo vai causando na vida dessas personagens. Essa decadência física não deixa também de representar a própria decadência da vida, as limitações que vão surgindo quando se entra em determinada fase da vida, o que se deixou de fazer ontem e hoje já não é mais possível etc. Outro dia lemos um conto seu em que era a mulher que via o marido em sua decadência física (o marido era quem dormia)e que havia aparentemente sido dominado pela rotina degradante. De repente ela se encontra com o passado através um telefonema recebido e resgata antigas memórias de um amor que não chegou acontecer. Mas bastaram um pouco dessas memórias para que ela sentisse o palpitar da vida. E aqui, neste conto, é o marido quem se alimenta das memórias para sentir um pouco desse palpitar da vida.

    Mais uma vez, um ótimo conto, forte, impiedoso, mas um conto de impacto.

    Um abraço,

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  8. Hélène, Niza, Antonio, Newton, Rita, Elô... Muito obrigado pelos comentários. É tão bom ler o que vocês escrevem, e descrevem. Todos são grandes leitores e honram qualquer escritor com suas análises.
    Um abraço a todos.
    Carlos.

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