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19 de setembro de 2012

Clube do Conto - Um pai: Carlos Rosa Moreira


         
            Eu ainda era pequeno, mas desde que o meu pai me dera o livro não pensava em outra coisa: precisava conhecer o Lago Tanganica. Esperava meu pai chegar para conversar sobre o lago e os caminhos que levariam até ele. Bom mesmo foi ouvir o meu pai dizer que o havia conhecido, mas que era muito difícil chegar até lá.
            ‒ Um dia você terá de ir e, sem esperar, nós sairemos em viagem.
            Uma noite, ouvi meus pais discutirem. No começo parecia briga, mas depois minha mãe se acalmou e cedeu, como se soubesse que a razão estava com meu pai. No fim ela pedia, tentava tocar o coração dele, e senti que conseguia. Os dois se abraçaram, choraram, mas sabiam que chegava a hora e eu teria de ir com meu pai. Um pouco mais tarde, emocionado, ainda com os olhos vermelhos, ele se sentou ao meu lado na cama.
            ‒ Então, filho, preparado? Vamos partir para conhecer o Lago?
            Eu assenti com a cabeça. Ele fez um carinho em meus cabelos e me olhou com uma ternura intensa, mais do que o normal de todas as horas e que eu veria se repetir em seu olhar muito tempo depois. Quando saiu do quarto deixou seus olhos ternos fixados em mim. Os olhos que me diziam tudo, que alertavam do bem e do mal, despediam castigos e carícias. Olhos azuis como o Mediterrâneo de Píteas e de Hanão; límpido como deveria ser o céu dos tuaregues, de Livingstone, de Stanley. Todos meus heróis, todos reais, como meu pai me dizia que a vida deveria ser. Fora ele quem havia me dado o livro que contava da grandeza dos homens, e muitas vezes lia para mim, enriquecendo-o de detalhes não escritos.
            Eu acordei com os ruídos matinais da casa. Meus pais me esperavam. Nossas malas já estavam prontas. Partimos após o café. Durante um tempo ainda avistei minha mãe que acenava, mas a distância a encobriu. Restamos apenas meu pai e eu. À nossa frente, o caminho serpenteava por campos e vales, fazia um trilho claro no meio do verde. Eu não notara, mas o meu pai chamou a atenção para o fim do caminho, muito adiante.
            ‒ Não vê o azul? Olhe bem, confunde-se com a bruma, mas lá é o mar, onde o caminho acaba.
            Eu achei ter visto, mas não tive certeza. Nos dirigíamos para o mar que meu pai mostrava, deixando a cada passo a poeira da nossa terra assentada sobre as trilhas tão conhecidas. Como meu pai havia dito, o caminho acabava-se no mar. Diante de mim estendia-se o azul. Na praia, inclinado sobre a areia, um barco fornecia alguma sombra.
            ‒ É o nosso barco. Vamos atravessar esse mar até a costa da África.
            ‒ O Mediterrâneo...
            Confesso que não achei o barco grande coisa. Senti medo. Era um escaler de aparência sólida com um local no meio para encaixar o mastro da única vela. Meu pai o examinou com cuidado, inspecionou a proa e a popa; o tabuado e as condições da vela; viu que não faltavam remos e forquilhas.
            ‒ Partiremos amanhã às primeiras horas. Teremos bom tempo.
            Almoçamos à sombra do barco e dormimos abrigados por ele. Ainda estava escuro quando meu pai me acordou.
            ‒ Vamos comer alguma coisa e zarpar.
            O céu tomava uma tonalidade brilhante à medida que clareava. Coloriu o Mediterrâneo de cores alegres que se refletiam na superfície lisa, vez ou outra encrespada por uma rajada fresca. Colocamos o barco no mar e meu pai içou a vela. Ela deu uma panejada, mas logo inflou como se tivesse orgulho de si mesma e o barquinho deslizou paralelo à praia. Meu pai deu um toque na cana do leme e a proa apontou o sul; uma brisa nos pegou pelo través, fazendo-nos romper água.
            ‒ Estamos por nossa conta, agora somos nós e o mar. Observe o que faço, pois a qualquer momento poderá ter de fazer sozinho.
            Começamos a velejar numa velocidade muito boa. Eu cumpria pequenos afazeres que o meu pai mandava. E principalmente me colocava atento para absorver seus ensinamentos. Às vezes me distraía, olhando o horizonte, as aves ou algum peixe que saltava, mas quando não me recompunha por uma chamada do meu pai alertando-me para qualquer coisa interessante sobre o andamento do barco, fazia-o por vê-lo sempre vigilante, quase preocupado, com os olhos a esquadrinhar do horizonte ao tope do mastro.
            ‒ Desejo que você olhe tudo, pois é tudo muito bonito. Mas não deixe de prestar atenção em mim.
            O Mediterrâneo estendia-se num azul magnífico por todos os quadrantes. Já não havia sinal de terra. Existia um nervosismo na superfície, algo agitado como alguém que sabe que precisa ser paciente, mas não para de andar de um lado a outro. Isso é coisa normal do mar, dizia meu pai. E parecia mesmo. O barco nem ligava para os pequenos solavancos das marolas nervosas. Enquanto deslizávamos sobre as águas, meu pai me mostrava o que eu não via: as mudanças nos tons do azul, indicando correntes diferentes, boas ou ruins; a movimentação das nuvens, o voo das aves, as coisas que passavam boiando e tudo que poderia nos dizer algo sobre um futuro próximo. Além disso, me contava que muito para bombordo estaria a Itália, Malta e depois Grécia e a Fenícia. Assim, o Mediterrâneo se tornava para mim não apenas uma porção de água para atravessar, mas um mar de sonhos, um palco de heróis reais, com suas dores e seus medos, como meu pai ensinara que os heróis devem ser.
            A noite chegou trazendo límpidas estrelas, mas os meus olhos se fechavam de cansaço. Meu pai não largava o leme nem a escota da vela. Eu procurava ficar acordado para não abandoná-lo sozinho naquela faina, mas, na verdade, nada podia fazer, apenas olhar e pensar que ajudava. Acabei dormindo no lugar que meu pai havia preparado para isso, no fundo protegido do barco. Tive um sono tranquilo. Quando acordei com os primeiros albores na manhã, senti que o barco jogava, subindo e descendo as ondas. Meu pai equilibrava-se na pequena bancada do timoneiro, sustentando o leme, agarrado ao cabo da vela.
            ‒ Volte a dormir, meu filho.
            Eu me deitei, mas não dormi. Não entendia como um homem podia aguentar sem dormir, manejando o leme e aquela vela o tempo todo. Do fundo do barco eu observava seu rosto, já barbado, vincado, mas colorido pelo azul dos olhos, brilhantes e vivos como o mar. Nosso barco escalava montanhas de água e desabalava ladeiras abaixo espadanando espuma para todos os lados. Passou o dia, veio outra noite. E as ondas açoitavam o barquinho que rangia guiado pelo meu pai. Uma tempestade caiu sobre nós. A cada relâmpago eu via o rosto do meu pai num clarão azulado. Vi-o crispado, preocupado, decidido, vitorioso, nervoso. As expressões de sua face calavam em minha alma. Até que o vi com medo. Ele olhava para adiante, além da proa, e o que via devia ser medonho, pois seu rosto transmudou-se de medo para pavor. Ao vê-lo assim, fiquei aterrorizado, pensei em me levantar e abraçá-lo, e fosse o que fosse que nos atingisse, nos encontraria juntos e juntos ficaríamos. Um relâmpago clareou o barco. Naquela luz repentina, vi os olhos do meu pai fixos em mim, senti que pressentia meus pensamentos. Imediatamente ele voltou a olhar adiante; e cerrou os dentes, contraiu as sobrancelhas e pareceu espantar o medo. O barco subiu, subiu, subiu até galgar uma crista imensa, parar por segundos e descer pelo outro lado.
            ‒ Não se envergonhe do seu pai. Mas tive receio de que não estivesse observando.
            A noite se foi e levou a tempestade. No dia seguinte, o mar estava liso como um espelho, cinza como o aço.
            ‒ Não podemos ficar boiando nessa calmaria, vou remar. Quero que você se alimente e esteja sempre preparado.
            E depois de tudo, de não dormir, de não comer, de enfrentar ondas irascíveis, meu pai remou. Remou até as mãos ficarem cheias de bolhas e sangrarem. Remou o dia inteiro.
            ‒ Pai, terra! Aquilo é terra, não é?
            ‒ É. Chegamos à África.
            Diante de nós, estendia-se outro mar. Tinha tantas ondas quanto o Mediterrâneo e o vento quente soprava por sobre tudo, levantando uma poeira brilhante das ondas mais altas, fazendo parecer borrifos de espuma branca. Eu sempre achei que o Saara fosse branco, mas à minha frente vi um mar de areia rosada que fazia um belo contraste com o céu.
            ‒ Vamos atravessar este deserto. Da mesma forma que o mar, tudo aqui agride. Às vezes, parecerá quieto; outras vezes, investirá contra você. Pergunte-se sempre o que ele fará. E preste atenção a mim.
            Então, ele se abaixou e pôs sobre os ombros enormes correias de couro que sustinham cantis cheios de água. Ajeitou a mochila e passou para mim uns poucos objetos. Cobriu-me com um albornoz atado a longo véu que protegia do sol. Bondosamente me sorriu:
            ‒ Está confortável?
            ‒ Está, pai.
            E começamos a andar. Ele ia à frente, num passo decidido e cansado. Eu olhava suas pernas se afundando na areia, voltando, dando outro passo e de novo se afundando. Quando o vento nos pegava de frente, eu sentia o cheiro do meu pai. Cheiro de coisas familiares, de escritório, de camisa lavada. E eu me lembrava da casa, da minha mãe, e imaginava o quanto meu pai deveria estar com saudade. Mas ele seguia naquela areia, sob aquele sol. Eu pouco sentia, pois ele me dava muita água, e me falava tantas coisas belas sobre o Saara, e me dava de-comer que eu nem sentia. Cruzamos com uma caravana de tuaregues. Eram homens azuis que andavam vagarosamente sobre as cristas das ondas de areia. Alguns iam sobre camelos que ondulavam feito o barco nas cristas das ondas do mar.
            ‒ Pai, não devemos segui-los?
            ‒ Não. Devemos ir nessa direção. Por que seguiríamos os tuaregues? Temos nossa bússola: veja, veja para onde aponta. Mais tarde será sua e você deverá usá-la para achar sua direção.
            Andamos dias e dias. O deserto parecia não ter fim. Achei-o pior do que o Mediterrâneo, que era apenas volúvel. Preocupava-me com meu pai, que pouco comia, quase não bebia; suas roupas se rasgaram expondo a pele ao sol furibundo do Saara. E quando caía a noite e um frio inacreditável nos assolava, ele me dava de-comer uma sopa quente e me cobria com os cobertores que trazia na mochila, e ainda me enrolava com aqueles trapos que eram sua roupa. Eu via meu pai insone a perscrutar as estrelas, sem tiritar de frio, sem dormir. E eu me perguntava como era possível suportar.
            Após muitos dias avistamos uma linha verde no horizonte. Vimos também que uma fila de homens caminhava em nossa direção, parecendo uma longa serpente escorregando sobre a areia. O da frente cumprimentou meu pai; atrás dele vinham outros, amarrados com cordas, ligados entre si por pedaços de pau atados aos seus pescoços. Eram tangidos por guardas armados que obedeciam ao da frente.
             ‒ Quem são?
        ‒ São escravos conduzidos por seus captores. Lá na frente os esperam os negociantes que os venderão para serem explorados até o fim de suas vidas. Homens vivendo do sangue e da carne de outros homens.
             ‒ E eles sabem disso?
            ‒ Não sabem. Mas alguns sabem e até se entregaram e se entregam aos seus senhores.  Deixe-os, nossa direção é outra. Além do mais, não temos armas, os captores são poderosos e o Saara não nos esconderá. E alguns dos escravos podem ficar contra nós.
            E apontou para o verde que, na verdade, era a floresta, indicando o fim do deserto.
            Foi muito agradável entrar na floresta. A umidade que brotava do solo substituiu a quentura nos nossos pés; no ar, um perfume molhado amenizava a face e os ombros rubros, castigados pelo sol do deserto. Dormimos ao pé de imensa árvore, cujas folhas lá no alto sobrepujavam as outras frondes. Meu pai me ensinou a fazer fogueira, a espantar animais, a não temer o escuro de onde vinha uma infinidade de ruídos estranhos, semelhantes a gritos e lamentos. Na manhã seguinte, quando o sol avermelhou o horizonte transformando-o em vasta fogueira, ele me acordou e disse que devíamos andar. No meio da manhã estávamos em plena savana. O capim alto, amarelado, até nos encobria. Vimos animais que passavam velozes, ouvimos urros e mugidos; às vezes, o chão tremia com a debandada inexplicável dos rebanhos. Andamos um bom par de horas naquele capinzal. Mas, de repente, meu pai parou. Esticou o braço com a mão espalmada, instando-me a ficar imóvel. Eu ouvi um urro poderoso que me arrepiou pelos e congelou o sangue. Meu pai farejava o ar. Veio em minha direção olhando atento para um lado, me pegou pela cintura e foi me levando até uma árvore de aparência frágil, a única que avistávamos.
            ‒ Suba naquele galho forte e fique lá.
            Eu obedeci. Instalei-me no galho que ele indicou, onde havia até um jeito para recostar e descansar. Mas era o único galho da árvore. Vi-o se abaixar e pegar um grosso pedaço de pau. Por um segundo senti um cheiro estranho, que passou rapidamente tocado pela brisa.  Era o mesmo cheiro que os gatos deixam em casa nos dias de chuva. Logo, uma cabeça imensa ornada por uma juba fulva surgiu no capinzal. Tinha o olhar curioso e agressivo. Com um movimento decidido, meu pai vibrou-lhe tão grande cacetada com sua borduna, que o leão fechou os olhos e baixou a cabeça, retornando de marcha a ré para o interior do emaranhado de capim. Mas logo outra cabeça apareceu, com a juba tão amarela quanto o capim; e duas outras sem juba, que vieram devagar, especulantes, ameaçadoras. Meu pai recuou, encostando-se à árvore. A primeira leoa investiu, e foi rechaçada com a borduna; a outra veio, levantou a pata exibindo as garras mortais, meu pai desfechou-lhe o porrete no crânio, mas ela fez um meneio e evitou a cacetada. Então, o leão atacou por trás, obrigou meu pai a desencostar-se da árvore, facilitando à leoa agarrá-lo pelas costas. Meu pai lutou, manejava a borduna com destreza e velocidade, mais feroz do que os leões, mas não foi suficiente. Vi o seu corpo esfarrapado e exausto sucumbir no meio daquele pelame. Ele ainda se virou para mim com os olhos mais ternos do que o normal de todas as horas, azuis brilhantes como o céu da África.
            ‒ Espere um tropel, quando um rebanho passar os leões o perseguirão, então você poderá descer da árvore e continuar.
            Foram as últimas palavras do meu pai; no entanto, a luta não havia terminado. Ele se defendeu e atacou, até que o leão cravou os dentes em sua cabeça e o arrastou para a savana. Ainda enxerguei, em meio ao capim, as sombras dos leões, mas logo tudo se acabou.
            É indescritível o choque e o terror que acometeram minha alma. Meus gritos misturados ao choro foram substituídos por guinchos que saíam irrefreáveis como soluços. Depois, envolveu-me um manto de indiferença e eu me senti exaurido, sem saber o que fazia, sem ter noção de onde estava. Acho que fiquei durante dias nesse estado.
            Numa tarde muito quente, vi um enorme pássaro ao meu lado. Vigiava-me com olhares sequiosos e maus. Uns ruídos estridentes e o farfalho de asas me fizeram olhar à volta: pousados na árvore havia mais três grandes abutres, e outros sobrevoavam a pouca distância. Assustado, ajeitei-me no galho e os espantei. E naquele instante voltei a mim. Mas do alto da árvore jurei que jamais desceria. Esperaria alguma coisa, sei lá... mas não desceria para o meio dos leões. Os dias se passaram e muitos tropéis ouvi. Por várias vezes a poeira se levantou na savana e avistei os leões em perseguição aos rebanhos. Certo dia, de manhã, vi pessoas atravessando o capinzal. Desci da árvore e corri para eles. Eram os captores e seus escravos.
            ‒ Quer seguir conosco?
            Fiz que sim e o homem me deu um rifle, disse-me para tomar conta do final da fila. Segui com eles por toda a savana, atravessamos a floresta e chegamos ao deserto. Do alto de uma duna eu olhei as ondulações que se tornavam planas no horizonte. Eu tinha vindo de lá com meu pai. Apertei a bússola na algibeira, o que fazer? Tudo me dava medo.
            ‒ Para onde vocês vão?
            ‒ Vamos para o litoral, venderemos os escravos e retornaremos para pegar outros.
            ‒ Vocês conhecem o lago Tanganica?
            ‒ Talvez seja próximo ao local onde capturamos os escravos.
            ‒ Pois eu quero ir até lá.
            ‒ Então nos siga, um dia você chegará lá.
            Eu segui os captores e seus infelizes escravos. No litoral me disseram que não retornariam logo, mas se quisesse eu poderia trabalhar até a hora da volta. Aceitei o trabalho. Depois de alguns dias, falaram que teriam de embarcar e eles mesmos levar os escravos para serem vendidos em outras terras. Eu podia ir, trabalharia no navio e ganharia pelo transporte dos escravos. Olhei para o deserto que se espraiava na direção indicada por meu pai e vi os leões: preferi embarcar.
            Já fiz várias viagens de captura e de transporte de escravos. Quando ouço o cordame do navio ranger sob o jogo das ondas e o ruído misturar-se aos gemidos dos infelizes escravos criando uma cantoria doida, ponho as mãos nos ouvidos e concentro-me nas estrelas. Contudo, das estrelas sinto-me devedor. Pois elas lembram o Mediterrâneo, o Saara e os ensinamentos do meu pai. São testemunhas perenes de tudo, não há como fugir das estrelas. Apalpo a minha bússola, esqueço de mim mesmo, tento me esconder do que sou. E a cada retorno das viagens de transporte de escravos alivio a minha aflição, decidindo que planejarei uma viagem bem organizada e segura até o Lago Tanganica.


6 comentários:

  1. Muito interessante esses personagens Carlos. Sem nomes próprios (pai, filho, mãe).Esse jogo de adivinha para se saber o espaço e onde se localizam no tempo, dá um quê de fantástico, mágico.

    Indagações minha para comigo mesma (se existir redundância maior que isto, me avisem rsrsr):
    1- Por que será que o filho tinha que ir ao lago (fiz até um tour pelo google para ver o Tanganica). Será que por ele ser, supostamente o lago mais antigo e profundo do mundo, contenha algum mistério insondável? No conto, essa viagem me pareceu uma espécie de peregrinação por água e terra, de um rito de passagem.
    2- quando voce fala dos olhos do pai, que coisa linda e afetuosa. mergulhei na narrativa do azul desses olhos e vislumbrei, talvez, uma metáfora da morte. Associe automaticamente o lago ao conto "A terceira margem do rio" de Guimarães Rosa, que tantas interpretações tem. Lembrei da barca mitológica de Caronte no rio Estige, este que atravessava as almas para o outro lado. Enfim, belo esse seu olhar para o olhar desse pai. Uma sensação de que você conhece esse olhar (tudo especulação - ainda bem que não trabalho no mercado de ações, iria levar muitos à falência).
    3- A ligação desse filho com o pai e vice versa é tocante. Um pai que não se alimenta, não dorme é quase sobre humano em prol da segurança e bem estar do filho. os ensinamentos, a luta com os leões para defender o filho (fico a imaginar o porquê dele também não ter subido na árvore). Uma visão terrificante e desesperadora da morte desse pai diante de tal ligação emocional.
    4- fiquei com a pulga atras da orelha quando o filho não segue o tropel como desejava o pai e segue os mercadores de escravos. rebeldia ante a ausência do pai, busca por uma direção preestabelecida e certa? fiquei a pensar nessa circunstancia e lembrei da pergunta que o filho faz ao pai, eles sabem que serão vendidos e o pai diz que uns sabem outros não. Refleti e me pergunto se também nós não somos escravos e fingimos que não sabemos. enfim, não sou boa em análises.
    5- "Do alto de uma duna eu olhei as ondulações que se tornavam planas no horizonte. Eu tinha vindo de lá com meu pai. Apertei a bússola na algibeira, o que fazer? Tudo me dava medo." --> Quantos medos não colecionamos ao longo de nossas vidas. quantos titubeios, erros e acertos. é um processo tão natural da vida. quantos leões não nos atravancam os caminhos. queria eu ter a coragem do pai e a bússola do filho, mas não tenho. tao pouco posso me esconder de mim mesma, já que não sei quem sou e menos ainda que planejei uma viagem segura ao Tanganica. Tudo é tão instável e contingente.

    Bem, eis o que seu conto me provocou Carlos (refugio-me no regaço das interpretações que me absolvem do ridículo quando extrapolo - isso sempre acontece)

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  2. Obrigado, Helene, por sua análise tão delicada e perspicaz desse conto que não passa de uma metáfora. Modestíssimo conto e humilde metáfora. Sem dúvida, nota-se que tudo aí é meio fantástico. Quis dizer muito do que você analisou, mas acho que estava em baixa quando escrevi esse conto. Isso faz tempo...
    Um grande abraço.
    Carlos.
    obs: entre outras coisas, você acerta em cheio com os olhos do pai e a metáfora da morte.

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  3. Carlos, eu poderia dizer que o seu conto possui a verve de antigas história de aventuras, como nos velhos tempos, com gosto de "Robinson Crusoé" ou "A Ilha do tesouro", e que por isso a história contada é uma história simples e linear, a história de um pai que leva o filho numa grande e aventurosa viagem, cheia de perigos e percalços, e que termina de forma trágica com a morte do pai. Mas eu não estaria sendo sincero comigo mesmo, estaria traindo um direito meu como leitor, o de viajar no texto e forjar uma quase outra história. Isto porque percebi uma grande riqueza de símbolos neste conto. E são estes símbolos que acabaram por me envolver num embalo gostoso até o final. O conto já começa de forma simbólica, uma viagem de pai e filho (uma jornada pela vida?). Depois há duas grandes travessias, a do Lago Tanganica e a do deserto (neste caso do Saara). Duas fontes riquíssimas de símbologia. Além da árvore onde o menino se abriga das feras e de outros símbolos que povoam o conto. Uma coisa que me surpreendeu foi a sensação com que fiquei ao terminar a leitura, a sensação de ter lido um romance, tamanha a dimensão sintética do conto.

    Você diz que o texto é antigo, mas já se vê o seu estilo sóbrio de escrever, seus períodos curtos, frases diretas, texto enxuto, como os mais recentes textos seus que tenho lido.

    Tenho ainda outras coisas a dizer, mas por ora deixo aqui estas preliminares. Helene abordou algumas questões muito interessantes que eu gostaria retomar.

    Até...

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  4. Carlos, muito bacana o conto. Acho que os pais, em geral, são isso aí que você retratou: movem céus e terra, atravessam mares e desertos, e enfrentam tantos leões quantos forem necessários em defesa de seus filhos. E às vezes sucumbimos aos leões. Às vezes é o preço que pagamos. Bom que sirva de exemplo aos filhos. Que evitem os leões! Assistir à morte do pai, nessas condições, e ter de decidir viver, no galho da árvore, afastando os abutres, foi o mais definitivo e real "rito de passagem". Depois disso, o lago tornou-se apenas o sonho que sempre fora. A realidade estava ali na sua cara: vida, morte, escravidão, liberdade. E, paradoxal como sua própria inserção na "maturidade", o jovem encontra sua liberdade trabalhando com os mercadores de escravos. Decerto seu coração não guardava muito espaço mais para firulas sentimentais. Os leões o ensinaram que somos feitos de carne e sangue. E os mais fortes se impõem. Desumano isso? Os captores de seres humanos estavam ali mostrando que não. Nada mais humano do que a barbárie. Coitados dos leões. São os mais inocentes na África que Carlos nos trouxe.

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  5. Carlos
    Você nos brinda com um conto cheio de simbologia e metáforas. E a mais marcante para mim é a transição feita pelo menino de um mundo conhecido e protetor para um mundo estranho e hostil, uma clara alusão ao rito de passagem da criança para a vida adulta. É a travessia da vida! Um percurso no qual a principal perda é a inocência, já que não é possível aos pais seguir com os filhos até o final. Em algum ponto da travessia a separação é inevitável. É a lei.
    A luta do pai com os leões me fez lembrar o livro O Velho e o Mar (Hemingway) no qual Santiago enfrenta os constantes ataques dos tubarões para salvar o seu peixe. Um livro gigante, cheio de metáforas sobre o instinto de sobrevivência do homem em todos os níveis.
    Lembrei-me também do filme “Império do Sol”. Quando o menino se perde dos pais tem os olhos inocentes, mas ao final quando é encontrado, após vivenciar os horrores da guerra, o seu olhar é outro. A inocência se perdeu. Na travessia, precisou tornar-se um adulto precoce para sobreviver, já que o seu mundo protetor não existia mais.
    Gostei do conto. Sensível. Retrata de forma comovente o drama humano pelos olhos de uma criança.
    Niza

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  6. Obrigado Helene, Antonio, Newton e Niza, muito obrigado pelos comentários e pela atenta leitura. Os participantes do Clube de Leitura não são leitores comuns, ser lido e receber um comentário de vocês é uma satisfação muito grande.
    Carlos.

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