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2 de agosto de 2012

Clube do Conto - O Ódio: Carlos Rosa Moreira



            O bichano passou por baixo da mesinha de centro e deu um pulo ágil, aninhando-se sobre o peito do homem. Ele nem olhou para o gato. Continuou com os olhos fixos num ponto qualquer da parede, deixando a mão afagar displicentemente o pêlo sedoso do bicho. Pensava nela, na maldita. Desgraçada... Lembrava-se das humilhações, os episódios desagradáveis somados e tornados um imenso volume que jamais se esvaziava em palavras, só crescia dentro dele, crescia como a roupa suja jogada dentro de um armário que já não fecha as portas. Pensou na última discussão e a raiva amarga ficou estagnada em sua garganta; as mãos cravaram-se na almofada do sofá e no lombo frágil do gato que se pôs a salvo com um movimento destro, antes que a constrição fosse fatal.  Ele se assustou com o desespero do bichano e retornou de suas lonjuras crestadas pelo ódio. Deixou o sofá e foi à janela. Ela não demoraria a chegar. Pegou o controle remoto e ligou o televisor. Outra tarde idêntica... Meses e meses iguais desde que ficara sem trabalho. O barulho abrupto da chave denunciou que ela chegava.
            ‒ E então, como foi o dia? ‒ ela perguntou enquanto guardava a chave.
            ‒ Mesma coisa.
            ‒ Ficou em casa?
            ‒ O tempo todo.
            Com os olhos cravados na tela do televisor, olhando sem ver, ele via a sequência organizada da mulher: vai desabotoar o terninho, o escroto do terninho; e vai lavar a porra da mão; “fez café?”
            ‒ Fez café?
            ‒ Tá na mesa.
            ‒ Vou tomar um banho. Eles logo chegarão para o jantar.
            E ainda ter de suportar aqueles dois! As mãos espalmadas sobre as feições aborrecidas mostraram que precisava fazer a barba.
            No espelho, o olhar azul da mulher o fixava. A testa grande, eriçada de cabelos crespos queimados e as sobrancelhas severas davam-lhe um ar de reprovação permanente. E mais o irritava a boquinha petulante e miúda na face quase sem queixo, com aquela papadinha embaixo. Olhou no fundo dos seus olhos negros: vinte e um anos de casamento acabavam assim...

            ‒ Como está o salpicão?
            ‒ Ótimo, querida. O Alfredo já contou a novidade? Vai levar uns gringos a São Paulo, vão pagar em dólares.
            ‒ Não sei o porquê, mas eles escolheram o meu táxi... ‒ disse Alfredo, sem parar de mastigar.
            ‒ É o capricho, Alfredo, a vontade de vencer. Não é qualquer um que tem isso.
            Ele não conversava,  mastigava com a cara quase dentro do prato. Olhou para ela de baixo para cima: “Puta...”
            ‒ Depois nós vamos fazer uma viagenzinha. Um finalzinho de semana em Araruama, né, meu bem?
            O sorridente Alfredo concordou com a mulher e virou-se para ele, dando-lhe um tapinha nas costas.
            ‒ E você, rapaz, não fala nada? Tô preocupado com você.
            ‒ Tô prestando atenção na conversa.
            Ela parou de mastigar e perguntou a ele:
            ‒ Pagou a conta do telefone? Vi que o dinheiro ainda está no lugar em que deixei.
             Ele tirou os olhos do prato. Sentiu que os olhares se cravavam nele. Miserável... Não tem esse direito... Fazer isso com um homem de quarenta anos, na frente desses babacas!
            ‒ Pago amanhã.

            No dia seguinte, ele acordou mais cedo do que de costume. Pegou o carro e foi até o galpão que havia guardado seu sonho. O resto da maquinaria estava lá, intacta, apenas coberta de pó. O negócio não dera certo. As dívidas cresceram e muitos equipamentos tiveram de ser vendidos. Quase perdeu tudo. Ela ajudou, mas a que preço! Jogava na cara, desenterrava frustrações do passado, e não perdia oportunidade para humilhar. Fazia doer mais do que doía o próprio fracasso: “...vontade de vencer” ; “Não é qualquer um que tem isso”; “Pagou a conta?” Maldita!
            Ele examinou as máquinas, acionou a energia, apertou o botão. Funcionava. O que sobrou estava bom.

            ‒ Gostaria que fosse comigo até à fábrica amanhã de manhã.
            ‒ Por quê?
            ‒ Quero que veja algumas coisas antes de vender.
            Ela parou o carro onde ele indicou. Havia chovido. O vento da noite sacudira as árvores e a rua estava coberta de folhas. Um aroma de seiva e mato molhado espalhava-se pelo ar. Ele levantou a porta de correr e ela entrou, depois trancou por dentro.
            ‒ Isto está uma sujeira ‒ disse ela.
            ‒ Dê uma olhada naquele material.
            ‒ Que material?
            Ela virou a cabeça procurando o lugar para onde ele apontava. O pescoço fino sobressaiu abaixo dos cabelos crespos. Com um movimento ágil, ele passou o cordel em torno do pescoço da mulher. Ela ainda tentou se voltar, mas o garrote a obrigou ao gesto instintivo de levar as mãos ao pescoço para livrar-se do aperto. Inútil. Ele puxava as pontas do cordel uma para cada lado, cruzando-as na nuca da mulher. E apertava. Fechava os olhos, trincava os dentes e apertava. Quando se acabaram os estertores da desgraçada e o corpo desabou, ele o conteve, mas manteve a constrição por minutos, até que a deixou cair. Nervoso, olhou à volta. Na claraboia do telhado, folhas verdes colavam-se ao vidro. Despiu a mulher. Um fio de urina escorria por baixo do corpo; ao retirar a calcinha, sujou os dedos com fezes líquidas. Lavou as mãos e foi tomado por uma calma intensa, quase um torpor. Pôs um avental de borracha e tomou o corpo nos braços. Colocou-o sobre uma grande mesa de mármore e, com os facões dos magarefes, desmembrou-o. Deveria desossar, mas o cortador era dos maiores, as lâminas desmanchariam os pedaços magros da mulher. Colocou os pedaços no cortador e apertou o botão. No início ficou olhando, mas os ruídos e o odor de carne e sangue tornaram-se nauseantes. Preferiu ir para os fundos da fábrica, onde havia um janelão de vidro que permitia ver o céu. Passou ali o resto da manhã. Comeu uns sanduíches e bebeu água da torneira. Por volta de meio-dia um solzinho despontou, mas logo o vento frio o levou embora. Mais tarde o vento virou ventania e sacudiu as folhagens; com ele chegou uma chuvinha fina que acinzentou a tarde que, quanto mais caía, mais acinzentava a fábrica, deixando tudo com uma cor só. Quando a noite veio, ele desligou o cortador. Dentro da máquina encontrou bocados de carne, pedaços de ossos e uns restos inidentificáveis misturados a uma pasta sanguinolenta. Vestiu as luvas de borracha, catou aquilo tudo e jogou num saco plástico. Fez uma limpeza geral, deixando escorrer para o ralo todo sangue misturado à água de lavagem. Ao lavar o cortador, alguma coisa chamou sua atenção próximo ao buraco para escoamento. Abaixou-se e pegou o objeto. Rodou-o entre os dedos. A aliança da puta! Cerrou os olhos e, num clarão fugaz, recordou o momento em que, diante de Deus e dos homens, colocara no dedo dela a aliança. Abriu os olhos e viu diante de si o grande cortador. Jogou a aliança para cima e tornou a pegá-la fechando o punho. Então se lembrou da última consulta com seu dentista, precisava comprar material para o bloco do dente. Poderia derretê-la...


5 comentários:

  1. Ninguém merece! Vou ter que mudar a classificação etária do blog. X-rated é insuficiente, terá que ser NC-17!!! E para os adultos, terei que advertir que os leitores se expõem a textos de sexo, nudez, violência, sangue coagulado e material profano em mais alto grau.

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  2. Perfeito!!Isso é o resultado de expor um ser humano a tantas humilhações.Nunca se sabe o que vai por trás de uma face aparentemente tranquila!
    Surpreendente! Lembrei de um outro conto em o assassino mata a mulher porque deixava os talheres sempre engordurados.Aparentemente é fútil, pequenos , mas somados vários fatos...ai que meda!!

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  3. Oh my God... De simplórios perdidos e mendigos passamos rapidamente a tarados, frustrados e assassinos... Evandro, onde vamos parar? Se continuar assim, serei obrigado a enviar meus contos cabeludos. Alguém mude o rumo dessa prosa!!! rsrsrsrs.....

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  4. Ficção ou realidade? Pois parece cena de filme e ao mesmo tempo notícia de jornal. Quantas vezes não assistimos a reportagens como se estivéssemos diante de um roteiro de cinema, bem distante de nossa realidade? E, no entanto, os fatos noticiados mostram a tragédia acontecendo na esquina, com o vizinho, a poucas quadras da nossa residência... O conto de Carlos é ficção, eu sei. Mas uma ficção que eu li parecendo ser uma história real. Assustador, não? Parabéns ao autor, que se revela a mim como um observador atento dos dramas humanos...
    Niza

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  5. Poxa Carlos perdi a oportunidade de comentar esse seu conto pessoalmente, mas não consegui falar com voce e também com algumas pessoas ontem, porque quase sempre chego atrasada e no final já estava atrasada, de novo, para outro compromisso. Bem, não há problema, faço por aqui mesmo.

    Ruminei seu conto muito mais que 3 vezes para expressar algo sobre ele. Não foi por causa da carne processada da infeliz, mas pelo próprio homem que morre aos poucos de rancor, talvez discordando de você quanto ao ódio, pois penso o ódio como algo mais aberto, ao passo que o rancor, para mim, é uma soma de vários ódios acumulados, profundamente velado, escondido. Para mim, o marido concentra na figura dessa mulher, todas as suas frustrações e fracassos enquanto indivíduo, e numa última tentativa, concebe na aniquilação dessa de sua mulher a oportunidade de sobreviver, mas até quando, será que dessa vez ele não fracassará, não se frustrará? Essa sobrevida é tão frágil, tão relativa.

    A mulher também profundamente frustrada e imersa nessa relação que em nada se manifesta como em seus sonhos e expectativas no outro ou em sua "cara metade". Quase sempre ao se dirigir a ele, era extremamente cruel, tocava nos pontos nevralgicos daquela criatura ja derrotada (chutava cachorro morto). A cena final me revirou o estomago biológico e, acho que se existir, o mental também. Não só pelo aspecto da violência cometida e os requintes bizarros e de crueldade, mas porque me dei conta, tempos atras e esse conto me relembrou, que milhões de casais vivem a mesma situação. Vivem como um arco perigosamente teso.

    Ontem, no encontro do clube, muitos falaram a respeito da interpretação dada ao livro segundo suas experiências pessoais. Existem algumas pessoas que afirmam ser possível dissociar sua vivencia das interpretações literárias dadas. Eu sinceramente jamais conseguirei fazer isso, sou completamente visceral em tudo que leio. Interpreto segundo o que, se não me engano, os alemães conceituam como "sitz im lebem - contexto de vida ou vital". Por isso seu conto me deu um soco nos estômagos. Pensando a respeito dessas relações corroídas, eu fiz uma comparação chula num pequeno texto (hoje, num tempo imemorial), semelhante a meu metier doméstico, como um pia em que depositamos um prato sujo e depois, mais outro e mais outro, e a pilha só vai crescendo e avançando para um estado de putrefação, chega o momento em que não há mais possibilidade de só lavar os pratos, a putrefação fica impregnada de tal modo que só arrancando a pia ou talvez até a mudança para outra casa.

    A personagem masculina de seu conto preferiu aniquilar, outros optam por "chutar o pau da barraca" (acredito que essa ultima opção seja mais saudável tanto para um quanto para o outro rsrsrs). Caramba!!!!!!! Era só um comentário! Olha no que se transformou, num palavrório desmedido. É isso. Parei.

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