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7 de agosto de 2012

Autor CLIc: Ler Ficção - Mergulhar na aventura ou investigar entrelinhas?: Elenir Teixeira


Elenir Teixeira

Do material que uso, as palavras pertencem a todo mundo e estão no dicionário. As idéias são da humanidade, chegadas a mim no convívio de todos, cultos e iletrados. Só a teia é minha.”
                              
                                                                                                  (Millor Fernandes)
                              
                    
              Stephen Kanitz, articulista da revista Veja, no artigo intitulado “Intenções por trás das palavras” e Amós Oz, escritor israelense, na Introdução de seu livro E a história começa, teceram sua própria teia ao falar da produção literária. A comparação dessas duas abordagens sobre o mesmo assunto é o que me proponho fazer no presente trabalho.

            O senhor Kanitz inicia seu artigo afirmando que muitos escritores, cientistas e formadores de opinião usam e abusam de nossa confiança elaborando seus textos com intenções ocultas, as quais denomina “agenda oculta”. A primeira coisa que tento adivinhar, ele diz, é a agenda oculta de escritores, colunistas e pseudo-cientistas. Sempre desconfio delas. A partir daí, passa a dirigir sua crítica, apenas, ao escritor e de forma generalizada. Mestre em Administração de Empresas; Doutor em Ciências Contábeis; Professor Titular de Economia e Contabilidade, da USP e ocupando cargos referentes à Consultoria e a Aconselhamento Empresarial, lida sempre com ciências exatas, sendo compreensível, até certo ponto, sua desconfiança quando se trata de um texto literário e, especialmente, o ficcional. Está acostumado a procurar o que existe de verdade por trás de demonstrações financeiras habilmente mascaradas ou dados ocultos nas entrelinhas de contratos comerciais. É sua função. Não se justifica, entretanto, sua afirmação: “A nação idolatra quem faz parte da academia de letras (sic), os bons de bico, e não os que calculam bem e com rigor científico, ignorando os membros da Academia Brasileira de Ciências. Por isso, somos um país do me engana que eu gosto”. Não se reconhece, aí, o autor dos artigos “Como Combater a Arrogância”, “Práticas de Cidadania” e “A Importância da Ética”. Se ele usou expressão de uso popular para criticar o país e seu povo, entendemos cabível, de igual forma, citar a expressão, também popular, “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

             Contradizendo a afirmação de Kanitz sobre a necessidade de nos mantermos sempre atentos quanto às possíveis agendas ocultas dos escritores, julgamos oportuno citar alguns valiosos pronunciamentos referentes à produção literária e ao escritor. Jacques Derrida, filósofo francês e autor da Teoria da Desconstrução, ao abordar instigantes questões sobre a literatura, assim, se manifestou: “Quando o livro fica pronto ele segue vida própria. É o parricida de seu autor, na medida em que permite sua desconstrução em infinitas interpretações, de acordo com o olhar de cada leitor”. Compartilha desse mesmo entendimento, Roland Barthes, filósofo e escritor francês, ao dizer que, ao término do livro, dá-se a morte do escritor, pois, aí, ele já não lhe pertence, cabendo, ao leitor, completá-lo com seu olhar. Para Wolfang Iser, expoente máximo da literatura alemã, e autor da Teoria da Recepção, a leitura é um processo de reconstrução do texto. Confronto entre a construção do autor e a reconstrução feita pelo leitor enquanto procede à sua leitura. A reconstrução não é intencional. Faz-se naturalmente e pode ocorrer de várias maneiras, de acordo com a visão de cada leitor.

              Naturalmente, a fantasia, no texto, pode entrelaçar-se com os pensamentos mais secretos e ocultos do escritor sem que ele próprio se dê conta. Assim, não somente o leitor se surpreenderá com os achados provenientes de seu olhar, mas também o próprio autor.

           É impossível, entretanto, pretender-se comparar os textos científicos e os puramente literários. Se Kanitz, com seu artigo, desejava chamar a atenção para a Academia Brasileira de Ciências, tudo bem. É louvável. Tanto os grandes cientistas , quanto os grandes escritores, merecem respeito e admiração. Acreditamos que o cientista ao descobrir uma fórmula, resultado de pesquisa, talvez de muitos anos, de inúmeras e exaustivas tentativas e de muitos erros, deve confrontar-se com aquele instante de epifania e incandescência, o verdadeiro “heureca barthesiano” gozado pelo escritor ao conseguir trazer para a página em branco a palavra, ou a frase ou a idéia que buscava para iniciar seu romance. Entretanto, o processo de escrita de ambos é completamente diferente. O cientista, quando começa a escrever, já tem algo para dizer. Não luta com a folha em branco a que, antes, nos referimos. O escritor quer dizer algo. Sente necessidade de escrever. Um desejo genuíno. Verdadeira compulsão. Para Roland Barthes, somente as obras literárias dão testemunho do Querer-Escrever, e, não, os discursos científicos.

        Concluindo, gostaríamos de comentar que, a nosso ver, Kanitz teria tentado persuadir o leitor a compartilhar de seu ponto de vista, utilizando-se, ele próprio, de agenda oculta, ao citar a frase infeliz de Salman Rushdie, autor de Versos Satânicos:“Na ficção pegamos o leitor desprevenido”. Como atribuir-lhe intenção oculta de ludibriar o leitor, porquanto seu objetivo era, justamente, chamar a atenção do povo contra a ditadura e o fundamentalismo islâmico, sendo, por isso, censurado, perseguido e ameaçado de morte?

          O mesmo ocorreu entre nós, durante a ditadura militar, em que apareceu a literatura de entrelinhas, cifrada. Precisava ser assim. A Festa, de Ivan Ângelo, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, são exemplos disso.Enquanto o artigo de Stephan Kanitz conseguiu, provavelmente, desestimular em muitos o prazer pela leitura ficcional, assustando-os e implantando em suas mentes o temor pelas intenções ocultas do escritor, Amós Oz, ao contrário, os atrai, referindo-se com muita graça e leveza, à produção literária.

            De início, fala da inveja mútua que existia entre ele e seu pai, autor de livros acadêmicos. Este invejava-o por ser livre como um passarinho ao escrever conforme quisesse, sem ficar confinado por todo tipo de busca e pesquisa prévia, atrelado ao jugo de comparar fontes e fornecer provas. Ele, por sua vez, invejava em seu pai justamente isso, ou seja, poder contar com verdadeira bateria de apoio, livros, tabelas, referências, sem precisar confrontar-se com a zombeteira página em branco. É difícil começar, diz. E, com relação a esse começo, afirma nele existir, sempre, um contrato prévio entre o escritor e o leitor, havendo vários tipos de contrato, inclusive os fraudulentos em que o escritor parece revelar todo tipo de segredo, para que o leitor confiante morda a isca. Poderíamos pensar, a princípio, que ele igualmente está se referindo às agendas ocultas de que fala Kanitz. Entretanto, não é o caso. Amós Oz fala do contraste que pode surpreender o leitor quando a história segue um caminho não imaginado por ele ao ler seu começo. E isto, certamente, é o que a torna mais instigante e prazerosa a cada descoberta.

          Embora nossa proposta, inicialmente, abrangesse, apenas, a Introdução de seu livro, acrescentamos suas palavras constantes da Conclusão: “O jogo da leitura requer que você, leitor, assuma uma parte ativa, traga o campo de sua experiência de vida e sua própria inocência, bem como cuidado e astúcia. Em última análise, como em qualquer contrato, se você não ler as letras miúdas, pode ser ludibriado, mas às vezes pode ser ludibriado precisamente por se atolar nas letras miúdas e não conseguir ver a floresta, de tanto olhar as árvores”.

             Deixamos aqui, para o senhor Stephan Kanitz, a advertência do escritor Amóz Oz.


(Elenir Teixeira é poeta e membro do Clube de Leitura Icaraí desde Fevereiro de 2009)

4 comentários:

  1. Elenir, que delícia ler você. Saudades.

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  2. Uma excelente reflexão e escrita clara, digna de publicação em revistas e academias, como já se deu em uma. Orgulhamos-nos de Elenir, nossa companheira de leituras.

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  3. Grande Elenir, não sabia dessa sua veia analítica apurada. Grata surpresa! Obrigado pelo belo texto.

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  4. Elenir, rendi-me um pouco à Teoria da morte do autor ante sua exposição clara e mais do que oportuna para mim.

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