Fundado em 28 de Setembro de 1998

29 de julho de 2012

Clube do Conto - Eis que morto acordei: novaes/



Os /s - Newton & Rita
       
       Acordei morto. Não poderia, mas aconteceu. Despertei-me da vida. Emergi desse mundo. Não foi sonho, mas sono profundo, acordado, fora do mundo. Foi um mergulho ao contrário, um libertar-me das águas, das ruas, das casas, das pessoas. Um soltar-me de mim mesmo, dos limites. Sim, um desprender-me de todos os infinitos limites que nos definem, que tão definitivamente nos moldam, ossos, músculos, pele, cérebro, e como tal nos possibilitam. Morri, impossibilitei-me, inexisti, e acordei desse modo, não vivente, falecido, cadáver nascido subitamente, como sói acontecer a todos algum dia, um belo dia, em que acordamos da vida para sempre.

       Há em volta quem chore, quem maldiga, quem espreite curioso, quem olhe cínico. Posso ver cada olhar, cada vívida expressão, de dor ou de regozijo, de pavor ou de descaso pavoneado, sem falar nos entediados que cumprem aqui uma obrigação desnecessária. Não entendo que necessidade teria eu, morto e ausente, de presenciar isso tudo. Corpo presente, carne e ossos definitivamente abatidos, imóveis, como um entulho, os restos inevitáveis dessa obra que foi a vida. Quem diabos se posta perante o entulho final de uma obra e põe-se a lamentar?  Que admirem a obra, não o entulho!

       Meu corpo agora é apenas um resto, quieto e mudo, mas a dizer o que todos os restos de vida dizem. O que se teve ali, que tipo de pessoa, que vida foi aquela, como ela nos esbarrou, qual o tamanho da marca que nos deixou aquele ser, o que foi mesmo que sua passagem serelepe e inconsciente pelo mundo nos causou e, também, claro, o quanto lamentamos, ou não, por seu desaparecimento. Daqui vejo que cabem muitas medidas nesse lamento, de um mísero segundo até uma vida inteira. De uma única pessoa até alguma multidão. Depende de quem lamenta, depende de quem se foi. Depende de quem se é.
       Mas, querem saber, vejo daqui, límpido como nunca, que nada disso a mim importa. Mais espanto-me agora com essa passagem de rostos perante meu semblante ‘defuntérico’, minha palidez mórbida, minha rigidez cadavérica, cada verídica ruga morta, estática, como se uma estátua feita de carne seca e pele amarelada estivesse aqui esperando o enterro, aguardando em exposição a hora de juntar-se à terra, servir-se o banquete aos vermes, que afinal esse entulho humano apodrece e cheira muito mal.

       Tudo isso, acreditem, em nada me ocupa. Não sou mais eu aqui, neste corpo. Não tivesse acordado morto, nem saberia nada disso, não estaria aqui a contar-lhes essas sensações. Mas, incrível, acordei. Mortinho da Silva, no entanto clarividente, com o corpo frio, mas a alma quente, logo eu que não acredito em superstições, nem deuses, nem copos d`água atrás da porta, nem espíritos, nem olho-de-boi. Talvez acredite em pimenteiras contra o mau-olhado. E só.

       Eu morto sou engraçado. Eis que minha preguiça reina vitoriosa, enfim. Eu aqui paradinho, deitado, num descanso suspeito, mas eterno. O que será que se passa na minha cabeça? Será que enfim vejo todos os filmes que na vida não consegui? Leio todos os livros grandiosos, tão maiores que minha pessoa, que por isso tanto me intimidaram e, dessa forma, fugiram-me? Será que vivo finalmente todos os amores impossíveis, os desejos mais ardentes, todos os impulsos românticos que calei, contive, amordacei, prendi em roupas de louco, doido para que me rompessem a timidez, mas temeroso das consequências, de ver-me feliz por vinte e quatro horas que fosse? Será que morto estou, mesmo, despido das amarras vivas, dos neurônios, que com seus fios cerebrais prendem-nos os passos, embaçam-nos o olhar, limitam-nos os movimentos, como se eles estivessem indissoluvelmente manietados pelo mundo, pelos demais seres na Terra, por sua vez também marionetes de si próprios, pois que não há, objetivamente, nada acima a controlar-nos, apenas o que vai pelas mentes, ou seja, os conceitos e preconceitos, essas coisas absolutamente abstratas, mas tão reais, essas coisas invisíveis que nos amarram a todos como se fossem correntes de aço.

       Vejo que nem morto me liberto do mundo: sou obrigado a cumprir aqui o último ritual. Vocês pensam que me homenageiam, mas a mim parece que me gozam. Expõem meu corpo morto ao público. Mas, que diabos, como podem pensar que estou gostando disso? Assistem à minha derrocada final, sem que eu possa respondê-los, sem que eu possa esboçar meu inconformismo, ou dizer-lhes que fui feliz e que essa morte em nada me incomoda, ou, se não for bem assim, que eu possa pelo menos resmungar e praguejar que espero a todos vocês do lado de cá, seus morrinhas, parem de babar-me o cadáver! Não ousem beijar-me a tez sem vida, que não pode corar-se, sem sangue, não pode sentir. Não veem que isto, em mim, não tem mais sentido? Não há tato, olfato, visão, audição, paladar. Não para mim. Só para vocês, seus egoístas, que me encostam lábios mornos para sentir o gosto da morte, não resistem, não é? Provar o raro e gélido sabor da sobra humana, da carne inerte, sentir por um segundo o que serão um dia. Não resistem e vêm babar-me o defunto.

       Olha, agora que acordei morto, percebo o quanto o velório é um achincalhe com o “ente querido”. Querem me enganar que as velas têm razão religiosa e que as flores, muitas flores, são homenagens sentidas, enquanto eu sei que tudo isto é tão somente para disfarçar o meu odor putrefato. Velas e flores não me confortam! – mas sim a vocês, seus hipócritas. E não me ponham ninguém a rezar na beira do meu caixão pois, querem saber?, eu não o ouço e mais me parece que vocês é que precisam dessa mensagem para apaziguá-los, para acreditarem na vida após a morte, pois não saberiam o que fazer com suas mortes em vida.

       Perdoem-me a acidez das palavras, é que não é fácil estar morto. E, vejam, o fato real é que o velório, o enterro e todos esses rituais da morte são a última escatologia pública que o homem ainda pratica. Um desrespeito ao morto e aos que se sentem obrigados a comparecer a esse espetáculo mórbido. Falarei uma vez só; entendam-me por favor. Alguns poucos séculos atrás, obrava-se em público. Era natural, como natural ainda é, hoje, essa exposição pública de um corpo morto. O rei parava a carruagem real para obrar e fazia suas necessidades fisiológicas à frente de todos. Vi numa fazenda colonial em Ouro Preto dois buracos sanitários, lado a lado, de modo que duas pessoas pudessem conversar enquanto aliviavam-se. E estes sanitários abertos, expostos, ficavam na cozinha, bem ao lado do fogão, de modo que a fumaça da comida disfarçasse o mal cheiro do que se evacuava no local. Ora, evoluímos, não foi? Adquirimos pudor e privacidade. Então – é óbvio – falta-nos agora pararmos de expor cadáveres para visitação geral, que é um dos hábitos mais deprimentes, escatológicos e degradantes que ainda temos.

       Ora, vejam só. Acordei morto e, morto, acordei, imaginando que no futuro teremos mais pudor, mas muitíssimo mais pudor, quando formos descartar o que restou de nossos parentes. Pudor e privacidade! Não mais a exposição pública da morte, esse momento tão único e tão pessoal. Nascemos sob as seletas vistas de médicos, mãe e, no máximo, do pai. Por que não podemos morrer assim? – à vista apenas dos necessários, dos imprescindíveis?

       A vocês que estão vivos, lhes rogo: libertem-se dos fios invisíveis que lhes amarram a consciência e a vida, os conceitos arcaicos e os preconceitos estúpidos. E nos deixem, os finados, desaparecermos com dignidade, longe de olhares piedosos ou indiferentes.

       Acreditem, indiferentes estamos nós, os mortos. E não queremos mais nada, muito menos piedade.


15 comentários:

  1. Lendo assim, parece até que isso já me aconteceu, e se for assim, como é que eu voltei? Tomara que você possa contar como é que se faz a volta, mesmo sem acreditar, como foi o caso da ida, para que eu possa descobrir como foi que pode ter se dado a minha volta. É /!

    ResponderExcluir
  2. MUITO BOM, MEU AMIGO!TEM SANGUE , FORÇA DE MORTO!E dá para se entender, toda essa vitalidade da escrita de morto, pois "O caixão envolve nascimentos"rsrs"O caixão é "o vaso que acomoda o desabrochar das bactérias" fungos e lervas. Daí algumas lembranças que uns e outros dos que se achando vivos retêm, pois
    caixão é uma nave entre a vida e outras vidas. "É um útero".Que seu personagem narrador tenha boa passagem e vida literária, tão boa quanto a de Brás Cubas.
    As citações são de Raphael Gancs,mas a admiração pelo escritor N/ é minha.
    Excelente!!!
    Ah, o casal / é um xucesso!rrsr Linda foto!Beijos.

    ResponderExcluir
  3. Posso reler os seus contos vezes sem contas,rsrsrs. Adoro seu humor espicaçado, a ironia destilada sobre a hipocrisia e o sonho e a fantasia que me despertam e embalam. Beijos, my love.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito bom, Newton, muito bom mesmo. Há uma grande força nesse texto tão bem escrito. Não só força no texto em si, mas nota-se força no escritor, fôlego. Há um ritmo que, em algumas passagens, de forma muito sutil, me lembrou certos textos Renascentistas. Não nas frases em si, não nas palavras, mas, de uma forma subjetiva, no ritmo de alguns períodos mais fortes, mais dramáticos. Há ironia sim, é interessante percebê-la, mas a força do texto, a forma como ele conduz e mexe com o leitor, que provoca imagens reais, é bem mais interessante.
      Parabéns, Newton, é sempre bom ler você. Um forte abraço.
      Carlos Rosa.

      Excluir
  4. Newton, você me surpreende cada vez mais. Um dia você disse que sempre fora avesso à ficção. Lendo este seu texto me pergunto o que seria então se você houvesse encontrado mais cedo esse gosto pela criação ficcional (sei que é bem recente sua incursão pela ficção). Neste conto, por exemplo, parece claro que o escritor é um ficcionista experiente, criativo e que tem domínio técnico apurado da composição de contos. Há humor, ironia, tudo muito sutil. E o mais importante, como diz Carlos, a capacidade de nos criar imagens é sem dúvida um traço forte de sua narrativa, uma força admirável dos seus textos e em especial deste. Parabéns, meu amigo, já sou um admirador de seus contos.

    ResponderExcluir
  5. Oi Newton - hoje no círculo leremos "A passagem tensa dos corpos" que justamente mostra a necessidade da linguagem para permitirmos a morte de alguém... não basta a morte física para deixarmos alguém partir. O interessante na sua criação é que este poder da linguagem é usado pelo morto que pensa, sente e fala, ou seja, está vivo! Você é um gênio!!

    ResponderExcluir
  6. Prezado Evandro, você é o cara que lê um livro que ainda não foi escrito... Portanto, acho que esse negócio de ida e volta pra você é muito fácil. Quando você "vai", vai pro futuro. Se o personagem do conto fosse você, ele na verdade não teria morrido, mas apenas teria visitado o futuro, justo no dia do seu próprio velório. Estaria ali vendo tudo e depois voltaria ao presente, Vivinho da Silva. Você não é nosso querido Concièrge à toa. Seus poderes extrassensoriais, algo a ver com os planetas e o espaço sideral em que está profissionalmente mergulhado, a todos encantam e surpreendem.
    Elô, Rita, Carlos, Antonio e Cris, muito obrigado pelas palavras carinhosas. Abraços, Newton.

    ResponderExcluir
  7. Caramba! Já estou até começando a acreditar que possuo esses poderes inexistentes!

    ResponderExcluir
  8. Esse olhar do morto é especial! Um morto que discute o público e o privado!
    Acho que esse morto está vivinho da Silva, Newton!!!
    Desconfio que esse conto, inspirado em um dia de fúria, expressa o desejo de soltar-se de si mesmo (amei o serelepe inconsciente), e gritar aos pares que se desliguem dos fios e amarras invisíveis, e se joguem como uma entrega! Não é a toa que o gozo e a morte, têm algo em comum.
    Esse morto parou um instante e congelou a vida, para observar em volta, a banalidade, o tempo perdido! Ah...... Se eu não soubesse que é o Newton, eu teria medo desse morto, vivinho da Silva: sonha em ler todos os livros e assistir todos os filmes, em uma “preguiça deliciosa”! Quero morrer também!
    Seu conto é delicioso e deve ser um prazer para quem entende de literatura criticá-lo!
    Como leitora, eu digo, meu querido Newton, preencheu meu dia!
    Um dos fios que liga a sua ficção à realidade dos fatos, (e são várias críticas), é a que você faz sobre a necessidade de mimar o morto, em público, assim, as pessoas sabem que estão vivas!
    Muito bem colocado! O morto, vivinho da Silva, queria dizer: “Cada um enterre seus mortos”!
    Com muita admiração
    Fátima

    ResponderExcluir
  9. Instigante, curioso, delícia de conto.
    Vou guardar para reler muitas vezes.
    Hélio Penna.

    ResponderExcluir
  10. Newton, identifiquei-me muito com o que li, pois também acho velório uma maldade com o morto que de morto não tem nada. Continua "vivinho" para presenciar aquela cena patética de um corpo que deixou a alma escapar. Seu conto é instigante, genial. Parabéns, querido amigo, pelo seu talento em escrever contos. Adorei. Beijos ....... Angela Ellias.

    ResponderExcluir
  11. E não bastava ser poeta... precisava "cavucar" mais fundo os subterrâneos para instigar temas delicados da nossa mortalidade... remexer em nossa falsa onipotência... turvar nossas narcísicas almas. E cada um de nós, mortos-vivos ou vivos já mortos, tem de se render ao espelho que você tão brilhantemente nos coloca frente ao rosto. E a nossa cara é mesmo de espanto... O texto é instigante e bem construído. Mexe com o leitor. Provoca o leitor. Incomoda o leitor. E isso revela o ótimo escritor que você é. Parabéns!
    Niza

    ResponderExcluir
  12. Ah!!!!!!! que maravilha poder descansar a mente lendo os contos dos colegas. Sabe Newton, eu também ja especulei, sem grandes conclusões (claro! não morri ainda), a respeito das redes neurais após a morte.

    O meu mundo literário lido está em festa, pois esse é o segundo personagem morto-vivo que encontra-se do outro lado para nos trazer noticias fresquinhas, peça ao seu personagem que diga ao outro morador (o Bras Cubas)que mando lembranças.

    Ainda estou matutando e concordando com essa frase: "...mas temeroso das consequências, de ver-me feliz por vinte e quatro horas que fosse?)--> muito interessante!

    ResponderExcluir
  13. Fátima, Helio, Angela e Niza: grato pela leitura e comentários. Aprendo e enriqueço minha percepção com o olhar de vocês. Abs, Newton.

    ResponderExcluir
  14. Salve, Helene... O sr. Mortinho da Silva mandou dizer que o Bras Cubas é, sem dúvida, o grande pioneiro e que ele retribui suas lembranças. Percebi, na minha rápida troca de pensamentos (esses mortos nos falam sem sons, por telepatia, algo assim, uma coisa muito estranha) que ambos ficaram muito satisfeitos com seu comentário. Assim na Terra como no Céu, todos agradecemos!

    ResponderExcluir

Prezado leitor, em função da publicação de spams no campo comentários, fomos obrigados a moderá-los. Seu comentário estará visível assim que pudermos lê-lo. Agradecemos a compreensão.