Já passava de duas horas da manhã. Acabara de ler o livro. Estava
arrebatada, assustada, sem chão. As
palavras ainda não tinham sido inteiramente absorvidas, processadas, mas algo
já parecia fazer efeito causando uma espécie de tonteira, vertigem. O coração
batia forte como se antevisse o risco. Teve medo. Sentia-se muito só, apesar do marido e do
filho estarem dormindo no cômodo ao lado. O silêncio da madrugada só
intensificou seu desconforto. Na sua
inquietude, buscou algo que há muito tempo não trazia à vida. Ainda não sabia o que pensar, o que dizer, o
que fazer, mas precisava de um canal de expressão. Aquele nó na gartanta precisava
sair, do contrário ela sufocaria. Lembrou-se de suas telas, tintas e todo
material que costumava usar para distrair-se.
Parara de fazê-lo pois, sem desejar, suas pinturas vinham se
manifestando de uma forma escura, indefinida, alheia a sua vontade. Habituada a pintar flores variadas e
belíssimas, achou estranho e assustador a imposição do negro, dos rabiscos sem definição,
das imagens que pareciam grunhir. No
passado, decidiu guardar seu material no sótão.
Justamente no mesmo local mencionado no livro! Que fato curioso, assustador. Parecia que duas forças agiam sobre ela: uma
convidava a subir as escadas, a encontrar-se com o que fora escondido há tempos
e uma outra soprava que fosse dormir, que no dia seguinte inúmeras obrigações
teriam que ser cumpridas. A sensação de
um breve encontro consigo mesma a atormentava. Não iria conseguir dormir, mesmo
que deitasse para isto . O dia, como de costume, estilhaçaria sua atenção para
pequenezas. Decidiu então enfrentar sua angústia e fazer o que precisava ser
feito. Foi se dirigindo para o espaço
dos fundos da casa, onde havia uma escada que levava para o sótão. Ao abrir a porta, viu muitas coisas
empilhadas, empoeiradas e teias de aranha evidenciando a passagem de tempo e a
desatenção. Seu material estava no mesmo
local em que deixara há tempos, como que a sua espera. Aproximou-se dele, abriu uma maleta onde
estavam pincéis, tintas, espátulas e outros objetos. Pegou um pano, preparou uma tela em branco,
acomodou-a no cavalete, sentou-se num banco.
Precisava da penumbra, por isto acendeu um candelabro e apagou as
luzes. Fechou os olhos, respirou
lentamente, como há tempos não se permitia e encarou a tela em branco. Desejou ter este campo de volta. Um espelho quebrado jazia no fundo do espaço,
que sob a luz da vela, desvelou apenas uma parte de sua face. A outra abria para uma imensa escuridão. Pela primeira vez não teve medo. Talvez o dia
tornara-se penoso demais para ser desejado.
Queria conhecer o outro lado e sua viagem estava apenas iniciando. Preparou uma palheta com fartura de tintas e
cores. Experimentou uma exuberância a que não estava habituada. Apertou os tubos de tinta como quem aproveita
uma última chance de ganhar vida. Pegou um primeiro pincel, fechou os olhos e
iniciou os movimentos. Gestos bruscos,
como ondas revoltas, cores escuras constrastando com tonalidades de azul. Outras
cores foram sendo inseridas na obra. Não era ela que guiava o pincel, mas o
contrário. Foi se deixando cada vez mais
disponível para aquele momento e perdeu-se no tempo, no espaço, de si. Surpreendeu-se pela paisagem se tornar cada
vez mais real, mais viva. Seus olhos mostravam
um encantamento maravilhado por aquele outro cenário, pela realidade criada com
suas próprias mãos. Já não se lembrava
do desconforto sentido, da angústia.
Naquele instante, estava tomada pela surpresa do desconhecido ter
apresentado uma possibilidade de luz e
não de sombras como imaginou por longo tempo.
Já não conseguia parar, e mesmo se pudesse, não queria interromper
aquele fluxo. Uma rara passagem fora aberta
e não queria estancar a criação.
Subitamente sentiu as mãos molharem-se.
Levou à boca. Era água
salgada. Assustou-se ao
não mais ver as mãos, mas senti-las tocar em ondas de um mar. De um instante a outro, começou a nadar,
sentindo que estava imersa. Prendeu o fôlego e subiu vislumbrando uma luz acima
da superfície. Ao sair deparou-se com
uma praia e ainda não tinha entendido o que acontecera. Nadou até a areia, jogou-se ao chão e sentiu
o sol aquecer seu corpo. Ficou
tonta. Estava arrebatada pela beleza do
lugar, mas não sabia o que fazer.
Sentiu-se culpada e desejou voltar, mas não era mais possível. Um quadro
de uma artista no sótão jazia perdido no fundo do mar.
Texto instigante, imagético e bom de ler. Ambientação típica de conto. Bem escrito, sem desperdícios, enxuto. Parabéns, Cris.
ResponderExcluirCarlos.
Cris, que estreia no gênero, excelente! Me lembrou um pouco Dorian Gray e nosso amado Mia Couto. Eu sou muito fã do realismo fantástico. Amei especialmente esta frase: "O dia, como de costume, estilhaçaria sua atenção para pequenezas. Decidiu então enfrentar sua angústia e fazer o que precisava ser feito". Ah, precisamos tanto fazer isso, não sucumbir às pequenezas e centrar no que precisa ser feito. Dá o que pensar, dá o que discutir. Parabéns!
ExcluirMuito bom, Cris! Traduziu muito bem essa verdade: a arte nos conduz e nos leva a belos lugares, sobretudo para a beleza que temos dentro de nós. Sua força e seu compromisso com a vida aparecem aqui de modo límpido e muito belo. Parabéns! Show de conto!
ResponderExcluirChris, perfeito,encantador.Um conto com essência de arte...Amei!E amei oscomentários sobre ele. Está na hora de você também se lançar na edição dos contos.
ResponderExcluirElô
Agradeço a todos pelos comentários que geram a motivação para produzir mais... Abraços!
ResponderExcluirAdorei o conto!!! Não importa que livro ela leu, mas o que leu a desassossegou. Então as telas passam a ocupar um lugar de pura expressão, não mais de distração e esquecimento. Esse é o poder da arte! Texto interessante...Parabéns!!! Niza
ResponderExcluirUauuuuuuu Cris. Muito bom garota.
ResponderExcluirAssim como Rita, eu também lembrei de Oscar Wilde, mas depois associei à Bíblia, pensei em Elias que foi alçado ao céu (ela encontrara finalmente seu paraiso) e em seguida, quando de seu processo criador fundir-se a ela, lembrei da frase também bíblica que diz mais ou menos isso: já não sou eu quem vive, mas o Cristo que vive em mim... (não lembro do resto, menos ainda onde encontrar.
Parabéns!!!!!!!!
Conto de rara beleza. Revela uma riqueza e uma profundidade dignos de muitas releituras.
ResponderExcluirLetras encantadas que nos tocam de modo sutil, deixando impressos em nossa sensibilidade
registros indeléveis de uma elegância inspiradora.
Marco Bregonci - 03/08/2013
Conto de rara beleza. Revela uma riqueza e uma profundidade dignos de muitas releituras.
ResponderExcluirLetras encantadas que nos tocam de modo sutil, deixando impressos em nossa sensibilidade
registros indeléveis de uma elegância inspiradora.
Marco Bregonci - 03/08/2013
Que beleza de conto, este é o sotão que todos gostariam de ter. Geralmente no sotão se guarda o que não tem utilidade mas o sotão do conto tem frestas de luz que cabem no mar, sensacional, senti até cheiro de maresia,
ResponderExcluirDensidade, intensidade, profundidade! Estes são alguns dos atributos contidos neste conto da Cristiana que se revela a cada passo uma escritora extraordinária.
ResponderExcluirDe uma sensibilidade delicada, vai compondo as notas do nosso drama humano intemporal.
Salve, Cris!
dília