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21 de maio de 2012

Uma vida que passou



Carlos Rosa Moreira

            Lembro-me bem de sua figura. Era magro e desempenado; tinha um queixo saliente, o nariz um pouco rombudo e uns olhos pequeninos, de uma cor cambiante entre o verde e o azul. O olhar era perscrutador, com uma ironia latente pronta para brotar.
            Não sei o porquê, mas, em minhas lembranças, vejo-o sempre de costas, indo; calça de brim claro, camisa branca de mangas dobradas até os cotovelos, botinas de elástico e chapéu. Jamais vi seus cabelos, se é que os tinha. Para mim, ele tinha chapéu.
            Todos os dias ele almoçava na casa da minha avó, sua irmã. Morava sozinho num sítio, não muito longe da cidade. Parece que o sitio não era grande coisa, havia lá aquela raça de formiga que devora tudo. Não adiantava plantar nada. Após o almoço, invariavelmente, ele caminhava até o outro lado da linha do trem, e ali passava as tardes sentado num longo banco de madeira com seus amigos. O movimento da cidade era na linha do trem, por isso ficavam lá, vendo o movimento e conversando. Todos os dias, tardes inteiras. À noitinha se retirava para o sítio; no dia seguinte voltava para almoçar. Tinha mulher, filhos e netos na capital. Pouco via os filhos, acho que não conhecia os netos.

            ‒ Neto? E eu lá sei de neto?!

            Ele gostava de conversar com meu pai, que era seu sobrinho. Eu ficava por perto escutando. Conversavam sobre terras. Meu pai, que se tornara turista em sua cidade natal, gostava de saber os preços das coisas.

            ‒ É alqueire mineiro. Tá pedindo dois milhão.

            Todo mundo por lá falava assim: um milhão, dois milhão, seis milhão.

            Não sei o porquê de ter pensado nele. Acho que estava na janela olhando pra ontem e vi um sujeito pelas costas, de roupa clara, indo. Às vezes somos assaltados por lembranças estranhas, nascidas de singelezas que ficaram guardadas e esquecidas. Acabei pensando naquela vida dele, sem fazer o bem, sem fazer o mal, só vivendo. Eu o achava meio ranzinza, mas vejo que não era não. Quem vive assim, só indo, vivendo, acaba tendo um jeito quieto mesmo. Acho que é gente que nasceu sabendo e, como sabem de tudo, a vida é só viver. Conhecem o hoje e o amanhã, o resto é ir levando.

            Depois que ele morreu, venderam o sítio em que morava. O comprador botou abaixo a casinha velha e construiu uma nova no mesmo lugar. Não sei por que fui pensar nele...

            No pinheirinho em frente à minha janela, tem um ninho de bem-te-vis. Costumo ver os pássaros em incansável vai e vem levando uma coisinha no bico para deixar no ninho. Os bem-te-vis trinavam muito alto naquelas manhãs de férias do meu pai em sua terra. Talvez por isso tenha pensado nele. Talvez tenha sido por causa dos bem-te-vis. Sei lá.

6 comentários:

  1. A memória, as lembranças escondem o que não sabemos bem verbalizar. Alguma coisa acontece e de repente vem à tona alguém que parece apenas ir. Será que não somos nós que vamos para além da nossa própria compreensão? Como é surpreendente a mudança de juízo que fazemos de alguém ao longo do tempo, sob a mesma circunstância. Amadurecemos, aprendemos, alargamos nossa ótica do mundo, ficamos menos críticos? Não temos mais vergonha de ser complacentes com que gostamos? Sei lá. Mas é incrível que um texto pretensamente simples nos leve a tantas questões. Obrigada, Carlos.
    (P.S: Conheço essa foto, rsrsrs)

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  2. Não sei se é por que a tarde está nublada, se é por que tenho muitos passarinhos por aqui, mas me deu tristeza e ao mesmo tempo alegria por saber que alguém ainda pensa nesse tio avô que teve sua casa substituida por outra. A vida segue, não somos mesmo eternos, mas, saber que alguém pensa nos que se foram, é um grande consolo. As substituições sempre me doem...
    Não conhecia a foto, mas adorei, a foto e o texto.
    Elõ

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  3. Pois é,essa foto aí foi tirada por gente muito bacana e elegante. E agradeço muito a vocês os comentários e a percepção do texto.
    Um grande abraço.
    Carlos.

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  4. Hummmmmmm! Gostei do estilo, tão leve e bucólico. Caramba, me fez lembrar que tempos atrás eu queria ser um galo de campina para voar.

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  5. Carlos, serei sempre suspeito ao comentar seus textos, pois gosto muito de seu estilo, de sua escrita suave, fluida e envolvente.
    Este seu texto me fez lembrar de algumas pessoas, gente que se foi para além-vida ou está por aí, aventurando-se pela vida. É bom lembrar dessas figuras de vez enquando. Um grande abraço,

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  6. Obrigado pelos comentários. Fico feliz por gostarem desse pequeno texto e do estilo da escrita.
    Carlos.

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